São Paulo, sábado, 30 de julho de 2011

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RÉPLICA

Sobre a gula

Poeta responde à coluna em que Ferreira Gullar afirma tê-lo ouvido criticar Oswald de Andrade em 1954

AUGUSTO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

O poeta Ferreira Gullar continua guloso. E mais desmemoriado do que nunca.
É verdade que já se penitenciou. No artigo "Errar é comigo mesmo" (26/7/2009), confessou-se: "Na primeira crônica, aqui publicada no dia 2 de janeiro de 2005, afirmei, em alto e bom som, que esqueço tudo o que leio e tendo a inventar de minha cabeça o que os romances não contam e os ensaios não dizem.
Que crédito pode merecer um sujeito tão desligado que chega a mijar na lata de lixo pensando que é o vaso sanitário? Era inevitável acontecer o que tem acontecido: cartas e cartas de leitores apontando os erros que cometo, informações erradas, dados equivocados. São tantos que já nem consigo lembrar, e não os lembraria ainda que fossem poucos, porque lembrar não é o meu forte. (...) E tem sempre aquele leitor chatinho que aproveita para nos dar um puxão de orelha. A minha, aliás, já está ardendo".
Lamento seus problemas neo-urológicos e auriculares. Mas ele esqueceu de dizer que sua cabeça só funciona para engrandecer-se. Lembra que, gênio precoce, foi campeão de bolinha-de-gude. E vive trocando as bolas, sempre em proveito próprio.
Gullar inventou uma conversa de bar de mais de 50 anos para tentar desmerecer o meu apreço a Oswald de Andrade, os muitos estudos que publiquei e, por tabela, os de Décio Pignatari e Haroldo de Campos contra nenhum trabalho seu, que sobre Oswald tem um poema de circunstância sacado do fundo da gaveta.
O encontro em Spaghettilândia jamais ocorreu. No Rio eu só como espaguete recomendado por amigos.
Conheci-o em 1955 em seu apartamento levado por Oliveira Bastos. Como disse Manuel Bandeira, fui puxá-lo pelos cabelos.
Neo-Nero, anunciara que não faria mais poemas. Mostrei-lhe os nossos e ele se saiu com um formigueiro trapalhônico... Quando a exposição de Arte Concreta (dezembro de 1956) foi para o Rio (em fevereiro de 1957), ele, que para aqui mandara cinco cartazetes formigulosos, encheu uma sala de formigas (13 cartazes de 1 x 2 m). Numa coletiva de 26 artistas em que a regra era que cada qual exporia até quatro trabalhos! Haja ética! Não adiantou.
O formicida do Tempo engoliu o guloso formigamento. Eu fora ao Rio convidá-lo generosamente para participar da mostra. Vi-o mais quatro ou cinco vezes de passagem. Uma, na casa de Mário Pedrosa: conversei o tempo todo com Mário Faustino, que era culto e civil, o oposto de Gullar, monoglota e ególatra.
Haroldo o viu uma vez, em 1957. Gullar só falava em Murilo Mendes e nos surrealistas. Na fase neostalinista, proclamou que quem estava certo era Mário de Andrade, não Oswald. Esqueceu disso também?
Conheci Oswald em 1949, visitei-o muitas vezes, e estive com Décio e Haroldo entre os poucos que o saudaram como "o mais jovem" no "Telefonema a Oswald" (Jornal de São Paulo, 15/1/1950). Décio nos representou no "banquete antropofágico" em homenagem ao poeta " sexappealgenário" no Automóvel Clube (1950).
Em 1954, Décio propôs a peça "O Rei da Vela" no seu Teatro de Cartilha. Nos manifestos da poesia concreta, Oswald é destaque. E, no "Diário Popular" (12/12/1956), depusemos Haroldo e eu: "Contra a reação sufocante, lutou quase sozinha a obra de Oswald de Andrade, que sofre, de há muito, um injusto e caviloso processo de olvido sob a pecha de 'clownismo' futurista. Seus poemas ('Poesias Reunidas O. Andrade'), seus romances-invenções 'Serafim Ponte Grande' e 'Memórias Sentimentais de João Miramar' (de tiragens há muito esgotadas, para não falar de seus trabalhos esparsos ou inéditos), que ainda hoje, por sua inexorável ousadia, continuam a apavorar os editores, são uma raridade no desolado panorama artístico brasileiro. A violenta compressão a que Oswald submete o poema, atingindo sínteses diretas, propõe um problema de funcionalidade orgânica que causa espécie em confronto com o vício retórico nacional".
Ninguém precisou de Gullar e sua vã gloríola.
A sua grande contribuição: descobriu em Oswald duas qualidades, humor e frescor. Nenhuma tem Gullar. Guloso e ressentido, diz que a poesia concreta é tolice, mas quer ser seu precursor... O "Lance de Dados", de Mallarmé? "Pensou" em traduzir... Só que foi Haroldo o tradutor.
Sousândrade é chato porque foi descoberto por nós, mas ele já sabia que existia.
O papo furado sobre Oswald é porque nós o resgatamos. Décio e Haroldo não são poetas -explode. Eu seria, mas fui corrompido pelos meus companheiros. Inglório furor competitivo. Frágil casquinha do trabalho alheio.
Por que não sai da casquinha e entra na Academia Brasileira de Letras onde o espera o confrade Sarney? Afinal, inventou a neomemória e o neoacademismo...

AUGUSTO DE CAMPOS, 80, é poeta, ensaísta e tradutor, autor de "Poesia Antipoesia Antropofagia" (Cortez e Moraes, 1978), "Despoesia" (Perspectiva, 1994), "Não" (Perspectiva, 2003), entre outros.



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