São Paulo, sexta-feira, 30 de agosto de 2002 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Com investimento recuperado antes de estrear, "Cidade de Deus" chega hoje às telas Todos contra todos
MARIO SERGIO CONTI DA SUCURSAL DO RIO
"Cidade de Deus", o filme de Fernando Meirelles, está à altura do romance homônimo de Paulo Lins que lhe deu origem. Publicado em 1997, a ficção
de Lins foi a mais ambiciosa e bem lograda da literatura brasileira nos anos 90.
O autor, recorde-se, nasceu e viveu na Cidade de Deus, uma das mais violentas favelas do Rio, hoje com 120 mil moradores. Contratado como entrevistador para um estudo sobre a criminalidade ali, Lins recolheu dezenas de histórias, que retrabalhou em ficção. O resultado é um romance que traça um panorama da implantação e disseminação do tráfico de drogas na Cidade de Deus a partir
dos anos 60. São mais de 200 personagens que se movem velozmente numa trama repleta de enfrentamentos e assassinatos.
O ponto de vista de alguém de
dentro da favela, aliado a uma
prosa de ritmo alucinante, revelou um mundo novo: a sociedade
guerreira, de luta de todos contra
todos, que está sendo construída
numa metrópole brasileira.
O filme de Meirelles consegue
resultado semelhante ao do romance. Pela primeira vez, traficantes que só aparecem nas páginas policiais mortos, ou presos,
adquirem consistência, tornam-se gente. A força dessa revelação
tem caráter explosivo. Como todo
grande filme, "Cidade de Deus"
altera a história do cinema. Filmes
passados em favelas, tidos como
fortes, agora parecem ingênuos.
Dois procedimentos do diretor
Meirelles explicam a dimensão
fundadora, inédita, do seu filme.
O primeiro é a escolha do elenco
que, com exceção de Matheus
Nachtergaele, é integrado por atores amadores, que moram em favelas cariocas. São rostos desconhecidos, e tão fortes, e tão naturais, que propiciam pequeno milagre: parece que se está vendo a
realidade bruta, pessoas verdadeiras, e não personagens.
Os jovens atores, muitos deles
crianças, abalam a crença do espectador na arte da interpretação.
Para que servem atores tarimbados se os rapazes de "Cidade de
Deus" conseguem transmitir uma
verdade que está além da arte? A
presença sempre ameaçadora de
Leandro Firmino da Hora, que faz
Zé Pequeno, não cabe em nenhuma escola de interpretação.
O segundo procedimento está
na forma narrativa, que combina
elementos da propaganda e de videoclipe. Aplicada a um universo
humano, a linguagem da circulação de mercadorias tem uma força dramática insuspeitada: os homens são coisas, e, portanto, dispensáveis numa sociedade na
qual a alienação é a viga mestra.
Como não poderia deixar de
ser, o filme está aquém do romance. A miríade de subtramas foi reduzida, em favor de se contar a
história de poucos personagens.
O humor, que existe no livro, foi
exagerado no filme, e a poesia da
linguagem sumiu. Mas o que não
funciona é o elemento extrafavela.
Quando a ação passa para o universo da classe média, "Cidade de
Deus" cai na inverosimilhança.
São reparos marginais, pois "Cidade de Deus" é uma obra-prima.
Ele enfrenta um problema agudo
da sociedade e não oferece consolação ou saídas. A frase de um de
seus personagens, um menino, serve de emblema: eu já roubei, já
assaltei, já cheirei e matei, sou um homem.
Cidade de Deus Produção: Brasil, 2002 Direção: Fernando Meirelles Com: Matheus Nachtergaele, Seu Jorge e grupo Nós do Cinema Quando: a partir de hoje nos cines Belas Artes, Center Norte, Eldorado e circuito Texto Anterior: Programação de TV Próximo Texto: Diretor enfrenta críticas e minimiza a sua pretensão Índice |
|