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CINEMA/ESTRÉIA
"CIDADE DE DEUS"
Antropóloga Alba Zaluar afirma que longa é "equivocado"
Diretor enfrenta críticas e minimiza a sua pretensão
DA REPORTAGEM LOCAL
"A pretensão é bem menor do
que se supõe. "Cidade de Deus" é
apenas um filme feito com um
certo talento, com boa vontade e
boas intenções", diz Fernando
Meirelles, sobre seu longa-metragem que estréia hoje em 99 salas.
Para pouca pretensão, "Cidade
de Deus" reúne grandezas demais. O título custou R$ 8,3 milhões. Consumiu cinco anos desde o início do projeto de transpor
para a tela a obra literária homônima de Paulo Lins até sua conclusão. Foi exibido na seleção oficial do Festival de Cannes e, antes
de sua estréia, recuperou o investimento financeiro que consumiu, com vendas internacionais
assinadas pela grife Miramax.
Co-dirigido por Katia Lund, é
um filme de Fernando Meirelles,
que comanda uma das mais bem-sucedidas agências de publicidade do país, a O2 Filmes.
Rodado na periferia do Rio, levantou suspeitas na Delegacia Regional de Entorpecentes, que apura suposta negociação da produção com o traficante Mineiro, para autorização das filmagens em
Cidade Alta.
Se a carreira comercial do longa
é desde já um êxito, há quem faça
restrições ao seu conteúdo. A antropóloga Alba Zaluar, autora de
pesquisa desenvolvida no conjunto habitacional Cidade de Deus
que originou também o livro de
Lins, diz que o filme é "equivocado" no retrato que faz do tráfico
no Brasil e nas características que
apresenta da população da favela.
Estética hip hop
Zaluar afirma que "a representação do conjunto habitacional da
favela como sendo um gueto negro é uma forçação de barra para
se adequar à estética hip hop".
"Quiseram representar talvez
para o exterior, porque fica mais
fácil para o estrangeiro entender
um gueto negro, já que existe o
exemplo dos Estados Unidos. No
Brasil é diferente, e o filme não assume a diferença brasileira", diz.
Meirelles responde que "a história do filme é sobre a guerra entre
o bando do Sandro Cenoura, que
é branco, e o do Zé Pequeno, que é
negro". "Se ela contar, vai ver que
no bando do Cenoura há muitos
brancos e que o parceiro do Zé
Pequeno que morre ao lado dele é
ruivo. O Buscapé, na vida real, é
branco. Mas preferimos que fosse
interpretado por um ator negro,
para não dar a idéia de que é o
branco que se dá bem", afirma.
A antropóloga acha que ""Cidade de Deus" tem mensagem "esquizofrênica, ambivalente". "Ao
mesmo tempo em que eles dizem
que a violência é um horror, mostram ao jovem que não há outra
saída, que é preciso entrar nessa
mesmo. E a gente sabe que essa
garotada morre antes dos 25 anos
de idade. Esse é o drama. O tráfico
é uma saída para a morte", diz.
Meirelles afirma: "Sim. A violência é um horror. Quanto ao
resto, eu responderia com uma
pergunta. Qual é a alternativa que
jovens da comunidade têm à violência? Agradeço o comentário.
Alba Zaluar entendeu o filme".
Revelação
O cineasta diz que seu objetivo
com "Cidade de Deus" não é "a
denúncia". "Meu interesse no livro também não é a história violenta, a denúncia social. Queria
mostrar que nosso país é dividido
e que tem um lado de cá que não
conhece o lado de lá."
"O livro de Paulo Lins me apresentou isso. A única coisa que eu
quis é contar aquela história e que
o espectador pudesse ter a mesma
sensação que eu tive com o livro,
de revelação, de saber como as
coisas funcionam."
O roteirista Bráulio Mantovani,
que deu 12 tratamentos ao roteiro
antes que "Cidade de Deus" começasse a ser filmado, faz coro à
despretensão de Meirelles.
"Nunca pensamos em mudar a
história do cinema. Queríamos
contar essa história e tomamos
decisões necessárias para isso.
Não é que tivéssemos um projeto
estético e escolhemos o livro de
Lins para colocá-lo em prática."
Cineasta e roteirista preferem
deixar afastado de si o rótulo de
intelectual. "Não sei se é uma falha ou uma característica, mas
não me lembro de termos grandes
debates éticos ou morais na elaboração do roteiro. Tínhamos outro tipo de questionamento, que
era como encontrar o ponto de
vista do livro", diz Mantovani.
Meirelles acha que "Cidade de
Deus" tem um só "mérito e frescor" -seu elenco e o ponto de
vista narrativo. ""Cidade de Deus"
é a instalação do tráfico no Rio
vista por um garoto que mora na
comunidade. Esse menino não
tem a compreensão macro. Se ele
começasse a explicar a questão da
economia global e da sociedade
brasileira, o apartheid social, não
seria mais a visão do menino."
"Seria a visão da classe média,
do sociólogo, do jornalista, e, isso,
sinceramente, a gente já cansou
de ver. O que o cara aqui da classe
média, que sou eu, acha, não interessa a ninguém mais, a gente já
sabe muito.
(SILVANA ARANTES)
Leia mais sobre "Cidade de Deus" em
www.folha.com.br/especial/2002/cidadededeus
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