São Paulo, sexta-feira, 30 de agosto de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

A venalidade de Michelangelo e Chagall

Recente trabalho publicado nos Estados Unidos levanta uma questão que poderia ser considerada bizantina, embora seja recorrente, pois de tempos em tempos discute-se a venalidade da arte como um todo, uma vez que grande parte da produção artística da humanidade, de uma forma ou de outra, foi encomendada, financiada ou patrocinada por papas, reis, duques, banqueiros e instituições empresariais, notadamente por bancos.
O autor é judeu e faz duas acusações explícitas a dois gênios dos maiores de todos os tempos. O primeiro é Michelangelo, ele mesmo, Michelangelo Buonaroti, escultor, pintor, arquiteto e poeta.
Como se sabe, o papa Júlio 2º, Giulio Della Rovere, ao lado dos Medicis de Florença, é um dos principais responsáveis pela Renascença. Contratou, ou melhor, obrigou-o a abandonar seu comércio de mármore, em Carrara, para, entre outras tarefas, pintar o teto da Capela Sistina, posteriormente fazer o grandioso afresco do altar-mor da mesma capela, construir a monumental cúpula que arrematou a catedral de São Pedro, em Roma, obra de Bramante e Maderno, e, finalmente, encomendou seu túmulo ao artista, que, além dos famosos escravos inacabados que se encontram na Academia de Florença, nos deixou o formidável Moisés que pode ser visto na igreja de São Pedro in Vinculis, fora do Vaticano.
Todas essas obras fazem parte da prateleira mais nobre do gênio humano e há mais de cinco séculos resistem como expressão maior da Renascença. Acontece que o autor, judeu-americano, desenvolveu um raciocínio politicamente correto para condenar não apenas a obra michelangelesca mas o próprio Michelangelo, alegando que ele trabalhava por dinheiro e que recebia de um papa truculento, que sitiava cidades, deixando-as sem água e sem víveres até que delas recebesse doações em ouro para financiar seus delírios renascentistas.
E vai além o autor: os papas, como é sabido, promoveram massacres por ocasião das cruzadas e, bem mais tarde, toleraram a Inquisição que mandou para a fogueira hereges, feiticeiras e judeus que se recusavam a aceitar o cristianismo.
Logo Michelangelo deve ser riscado das enciclopédias, da história universal, devendo cair sobre ele o silêncio punitivo da humanidade sadia, para a qual o papado medieval e renascentista merece repulsa e esquecimento.
Outro argumento do mesmo autor vai em cima de Chagall, pintor contemporâneo, que foi um entusiasta do sionismo e cuja condição de judeu o orgulhava, fazendo trabalhos para prédios e monumentos em Israel sem nada cobrar.
Mas... mas Chagall era também um profissional e, na reforma da Ópera de Paris, pintou (aliás genialmente) a cúpula daquela maravilha neoclássica de Garnier, que, junto ao formidável gótico da Notre Dame, constitui certamente um dos dois maiores monumentos da capital francesa.
Para o autor em questão, Chagall prostituiu-se, pois não deveria ter aceitado a encomenda dos franceses, "notórios anti-semitas" desde o caso Dreyfus, no século 19, e até recentemente, quando De Gaulle quis saber quem dera o primeiro tiro na crise de Suez e, mais recentemente ainda, quando após o 11 de setembro de 2001, diversas manifestações anti-semitas tiveram lugar em Paris e em outras cidades francesas.
Antecipando-se aos argumentos contrários que seu livro despertaria, o autor os refuta previamente. Michelangelo deveria desconfiar da truculência de um papa como Giulio Della Rovere e já no tempo dele, embora não houvesse ainda a Inquisição, os hereges e judeus eram discriminados, perseguidos e, em alguns casos, sacrificados.
Quanto a Chagall, também ele não deveria ter aceitado a encomenda da Ópera de Paris -não só porque os franceses têm uma tendência histórica ao anti-semitismo, mas porque foi ali, naquele palco histórico, que Wagner fez a primeira apresentação internacional de "Tannhäuser", chegando a modificar o libreto e a partitura musical para colocar a ópera ao gosto da platéia parisiense.
E, como se sabe, Wagner era um anti-semita fanático e, como se isso não bastasse, tornou-se o compositor predileto de Hitler. Até hoje se discute se Wagner pode ou não ser executado em Israel. Nos primeiros anos do Estado judeu, a execução de suas obras era sumariamente proibida; só aos poucos -e esparsamente- alguns maestros e orquestras se recusam a boicotar o autor de "Lohengrin" e "Os Mestres Cantores".
Há uma estética ideológica que condena artistas (pintores, músicos, escritores etc.) a serem "não-pessoas". Na finada União Soviética, era comum um autor ou artista que não cumpria a ortodoxia do regime ser internado em clínicas psiquiátricas, ter sua obra destruída e ser considerado inexistente em termos de registro civil.
Há também uma estética provinciana, que cobra do artista uma fidelidade a valores politicamente corretos, sendo que o "politicamente correto" é um conjunto de prevenções que, além de efêmeras, são moralmente discutíveis, pois estão a serviço de uma mentalidade que procura obrigar a sociedade a adotar um pensamento único, e -o que é pior- uma moral tão discutível quanto qualquer moral.


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