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CARLOS HEITOR CONY
A venalidade de Michelangelo e Chagall
Recente trabalho publicado nos Estados Unidos levanta uma questão que poderia
ser considerada bizantina, embora seja recorrente, pois de tempos
em tempos discute-se a venalidade da arte como um todo, uma
vez que grande parte da produção
artística da humanidade, de uma
forma ou de outra, foi encomendada, financiada ou patrocinada
por papas, reis, duques, banqueiros e instituições empresariais,
notadamente por bancos.
O autor é judeu e faz duas acusações explícitas a dois gênios dos
maiores de todos os tempos. O primeiro é Michelangelo, ele mesmo,
Michelangelo Buonaroti, escultor, pintor, arquiteto e poeta.
Como se sabe, o papa Júlio 2º,
Giulio Della Rovere, ao lado dos
Medicis de Florença, é um dos
principais responsáveis pela Renascença. Contratou, ou melhor,
obrigou-o a abandonar seu comércio de mármore, em Carrara,
para, entre outras tarefas, pintar
o teto da Capela Sistina, posteriormente fazer o grandioso afresco do altar-mor da mesma capela, construir a monumental cúpula que arrematou a catedral de
São Pedro, em Roma, obra de
Bramante e Maderno, e, finalmente, encomendou seu túmulo
ao artista, que, além dos famosos
escravos inacabados que se encontram na Academia de Florença, nos deixou o formidável Moisés que pode ser visto na igreja de
São Pedro in Vinculis, fora do Vaticano.
Todas essas obras fazem parte
da prateleira mais nobre do gênio
humano e há mais de cinco séculos resistem como expressão
maior da Renascença. Acontece
que o autor, judeu-americano,
desenvolveu um raciocínio politicamente correto para condenar
não apenas a obra michelangelesca mas o próprio Michelangelo,
alegando que ele trabalhava por
dinheiro e que recebia de um papa truculento, que sitiava cidades, deixando-as sem água e sem
víveres até que delas recebesse
doações em ouro para financiar
seus delírios renascentistas.
E vai além o autor: os papas, como é sabido, promoveram massacres por ocasião das cruzadas e,
bem mais tarde, toleraram a Inquisição que mandou para a fogueira hereges, feiticeiras e judeus
que se recusavam a aceitar o cristianismo.
Logo Michelangelo deve ser riscado das enciclopédias, da história universal, devendo cair sobre
ele o silêncio punitivo da humanidade sadia, para a qual o papado
medieval e renascentista merece
repulsa e esquecimento.
Outro argumento do mesmo
autor vai em cima de Chagall,
pintor contemporâneo, que foi
um entusiasta do sionismo e cuja
condição de judeu o orgulhava,
fazendo trabalhos para prédios e
monumentos em Israel sem nada
cobrar.
Mas... mas Chagall era também
um profissional e, na reforma da
Ópera de Paris, pintou (aliás genialmente) a cúpula daquela maravilha neoclássica de Garnier,
que, junto ao formidável gótico
da Notre Dame, constitui certamente um dos dois maiores monumentos da capital francesa.
Para o autor em questão, Chagall prostituiu-se, pois não deveria ter aceitado a encomenda dos
franceses, "notórios anti-semitas"
desde o caso Dreyfus, no século 19,
e até recentemente, quando De
Gaulle quis saber quem dera o
primeiro tiro na crise de Suez e,
mais recentemente ainda, quando após o 11 de setembro de 2001,
diversas manifestações anti-semitas tiveram lugar em Paris e em
outras cidades francesas.
Antecipando-se aos argumentos contrários que seu livro despertaria, o autor os refuta previamente. Michelangelo deveria desconfiar da truculência de um papa como Giulio Della Rovere e já
no tempo dele, embora não houvesse ainda a Inquisição, os hereges e judeus eram discriminados,
perseguidos e, em alguns casos,
sacrificados.
Quanto a Chagall, também ele
não deveria ter aceitado a encomenda da Ópera de Paris -não
só porque os franceses têm uma
tendência histórica ao anti-semitismo, mas porque foi ali, naquele
palco histórico, que Wagner fez a
primeira apresentação internacional de "Tannhäuser", chegando a modificar o libreto e a partitura musical para colocar a ópera
ao gosto da platéia parisiense.
E, como se sabe, Wagner era um
anti-semita fanático e, como se isso não bastasse, tornou-se o compositor predileto de Hitler. Até
hoje se discute se Wagner pode ou
não ser executado em Israel. Nos
primeiros anos do Estado judeu, a
execução de suas obras era sumariamente proibida; só aos poucos
-e esparsamente- alguns
maestros e orquestras se recusam
a boicotar o autor de "Lohengrin"
e "Os Mestres Cantores".
Há uma estética ideológica que
condena artistas (pintores, músicos, escritores etc.) a serem "não-pessoas". Na finada União Soviética, era comum um autor ou artista que não cumpria a ortodoxia do regime ser internado em
clínicas psiquiátricas, ter sua obra
destruída e ser considerado inexistente em termos de registro civil.
Há também uma estética provinciana, que cobra do artista
uma fidelidade a valores politicamente corretos, sendo que o "politicamente correto" é um conjunto
de prevenções que, além de efêmeras, são moralmente discutíveis, pois estão a serviço de uma
mentalidade que procura obrigar
a sociedade a adotar um pensamento único, e -o que é pior-
uma moral tão discutível quanto qualquer moral.
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