São Paulo, quarta-feira, 30 de agosto de 2006

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

O direito à infelicidade

Os manuais de auto-ajuda apresentam o infortúnio como um elemento estranho à condição humana

É UM dos fenômenos mais interessantes: compramos a imprensa brasileira e, nas tabelas de best-sellers, encontramos ficção, não-ficção. E a outra. Qual outra? A categoria de auto-ajuda, claro. Acompanho sempre. Leio sempre.
Não digo compro sempre, mas vocês percebem a idéia. Mais: quando cruzo o Atlântico e entro numa livraria brasileira, faço vênias respeitosas aos autores canônicos. Bom dia, sr. Machado. Como está, sr. Freyre?
Passe bem, sr. Bilac. Mas avanço, ladino como um diabo, para a seção de auto-ajuda. E por lá fico, lambuzando os meus olhos insanos com dezenas e dezenas de conselhos "filosóficos". Terei cura?
Duvidoso. E o exercício, pelo masoquismo evidente, não promete um futuro tranqüilo. Desde logo porque a experiência alimenta em mim uma tristeza profunda. Coisa estranha: manuais sobre a felicidade deveriam proporcionar alguma. Não proporcionam. Quando termino a leitura de um, e de outro, e de mais outro ainda, a minha infelicidade já subiu o Everest. Por cada "conselho", a úlcera incha. Por cada "máxima", o tumor cresce. E quando estou saciado deste festim cruel, saio para a rua. A rastejar. Como um verme. Como o verme que sou.
Explicações? Não tenho muitas. Sim, os livros são essencialmente falsificações grosseiras de ciência (ou filosofia) praticadas por pseudocientistas (ou pseudofilósofos) que julgam ensinar o que apenas se aprende, vivendo. Sem falar do óbvio: não existe uma "solução final" para todos os seres humanos, indistintamente considerados. E se você, leitor infeliz, sentiu um arrepio de horror pela espinha abaixo com semelhante expressão, confesso que foi de propósito: porque na idéia de uma "solução final" está sempre um convite para a tirania.
E os manuais de auto-ajuda são exemplos de tirania. De pequenas tiranias consumidas por escravos dóceis e fiéis que acreditam em dois equívocos. O primeiro é conhecido: não existe manual de auto-ajuda que não apresente o infortúnio como um elemento estranho à condição humana. A tristeza é uma anormalidade, dizem. O fracasso não existe e, quando existe, deve ser imediatamente apagado, ordenam. Na sapiência dos manuais, a infelicidade não é um fato; é uma vergonha e uma proibição.
O que implica o seu inverso: se a infelicidade é um proibição, a felicidade é obrigatória por natureza. Obrigatória e radicalmente individual. Ela não depende da sorte, da contingência e da ação de terceiros: daqueles que fazem, e tantas vezes desfazem, o que somos e não somos. Depende, exclusiva e infantilmente, de nós. O tom é militar e marcial; a felicidade é uma batalha e uma conquista. E eu rendo-me ao primeiro disparo. Quem suporta semelhante fardo? Quem consegue suportar a obrigação totalitária de ser feliz?
Todos os dias, um batalhão de brasileiros corre às livrarias do bairro em busca do que não pode ser procurado. Apenas vivido e, sem explicação ou regra, encontrado quando encontrado. A "busca da felicidade" não passa de um clichê televisivo que só alimenta a infelicidade dos desesperados.


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