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JOÃO PEREIRA COUTINHO
O direito à infelicidade
Os manuais de auto-ajuda apresentam o infortúnio como um elemento estranho à condição humana
É UM dos fenômenos mais interessantes: compramos a imprensa brasileira e, nas tabelas de best-sellers, encontramos ficção, não-ficção. E a outra. Qual outra? A categoria de auto-ajuda, claro.
Acompanho sempre. Leio sempre.
Não digo compro sempre, mas vocês
percebem a idéia. Mais: quando cruzo o Atlântico e entro numa livraria
brasileira, faço vênias respeitosas
aos autores canônicos. Bom dia, sr.
Machado. Como está, sr. Freyre?
Passe bem, sr. Bilac. Mas avanço, ladino como um diabo, para a seção de
auto-ajuda. E por lá fico, lambuzando os meus olhos insanos com dezenas e dezenas de conselhos "filosóficos". Terei cura?
Duvidoso. E o exercício, pelo masoquismo evidente, não promete
um futuro tranqüilo. Desde logo
porque a experiência alimenta em
mim uma tristeza profunda. Coisa
estranha: manuais sobre a felicidade
deveriam proporcionar alguma.
Não proporcionam. Quando termino a leitura de um, e de outro, e de
mais outro ainda, a minha infelicidade já subiu o Everest. Por cada
"conselho", a úlcera incha. Por cada
"máxima", o tumor cresce. E quando estou saciado deste festim cruel,
saio para a rua. A rastejar. Como um
verme. Como o verme que sou.
Explicações? Não tenho muitas.
Sim, os livros são essencialmente
falsificações grosseiras de ciência
(ou filosofia) praticadas por pseudocientistas (ou pseudofilósofos) que
julgam ensinar o que apenas se
aprende, vivendo. Sem falar do óbvio: não existe uma "solução final"
para todos os seres humanos, indistintamente considerados. E se você,
leitor infeliz, sentiu um arrepio de
horror pela espinha abaixo com semelhante expressão, confesso que
foi de propósito: porque na idéia de
uma "solução final" está sempre um
convite para a tirania.
E os manuais de auto-ajuda são
exemplos de tirania. De pequenas tiranias consumidas por escravos dóceis e fiéis que acreditam em dois
equívocos. O primeiro é conhecido:
não existe manual de auto-ajuda
que não apresente o infortúnio como um elemento estranho à condição humana. A tristeza é uma anormalidade, dizem. O fracasso não
existe e, quando existe, deve ser
imediatamente apagado, ordenam.
Na sapiência dos manuais, a infelicidade não é um fato; é uma vergonha
e uma proibição.
O que implica o seu inverso: se a
infelicidade é um proibição, a felicidade é obrigatória por natureza.
Obrigatória e radicalmente individual. Ela não depende da sorte, da
contingência e da ação de terceiros:
daqueles que fazem, e tantas vezes
desfazem, o que somos e não somos.
Depende, exclusiva e infantilmente,
de nós. O tom é militar e marcial; a
felicidade é uma batalha e uma conquista. E eu rendo-me ao primeiro
disparo. Quem suporta semelhante
fardo? Quem consegue suportar a
obrigação totalitária de ser feliz?
Todos os dias, um batalhão de brasileiros corre às livrarias do bairro
em busca do que não pode ser procurado. Apenas vivido e, sem explicação ou regra, encontrado quando
encontrado. A "busca da felicidade"
não passa de um clichê televisivo
que só alimenta a infelicidade dos
desesperados.
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