|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FESTIVAL DO RIO
Documentários mostram abismos raciais, políticos e sociais por trás de grandes acontecimentos midiáticos
Filmes revelam assimetrias de poder insuperáveis
MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO
A sensação primária causada
por alguns dos filmes da mostra
"Limites e Fronteiras", no Festival
do Rio 2004, é de desconforto. Em
certos casos, chega-se à insuportável conclusão de que não há articulação social possível contra as
brutais assimetrias de poder.
Há exemplos disso para todos
os gostos. Um dos mais interessantes é trazido pela paquistanesa
Sharmeen Obaid em "Reinventando o Taleban?". No documentário, a jornalista, radicada nos
EUA, investiga um movimento
fundamentalista islâmico que domina a vida paquistanesa no norte do país, perto do Afeganistão.
Seu propósito central não é
mostrar apenas que a ameaça do
islã radical, antes representada
pelo Taleban, está ressurgindo
sob a forma do MMA (Muttahida
Majlis-i-Amal), coligação de partidos religiosos que defendem o
império da sharia (lei islâmica).
Ela deixa claro que a ameaça nunca deixou de existir e que a principal vítima não são valores ocidentais, mas as mulheres.
Para ilustrar essa assimetria de
poder, Obaid submete-se ela mesma à experiência de enfrentar o
mundo masculino do fundamentalismo islâmico. O resultado é
eloqüente. Em vários momentos
do tenso documentário, ela se vê
como única mulher no meio de
homens que não se vexam de reafirmar a primazia masculina em
todos os quadrantes da vida social. Não há negociação possível.
Outra desconcertante impossibilidade é demonstrada pela marroquina Simone Bitton, cidadã
francesa e israelense, em "Muro".
Por meio de lentas tomadas, ela
retrata o asfixiante universo da
barreira israelense erguida para
conter o terrorismo palestino.
Um assessor do governo israelense, ao justificar o muro, relata a
Bitton as incríveis qualidades tecnológicas do empreendimento. A
barreira não é apenas um obstáculo de concreto: ela é também
um caríssimo prodígio digital.
O contraponto de Bitton, por
sua vez, é humano. Os israelenses
e palestinos entrevistados se queixam de que essa versão contemporânea da muralha medieval
erode as chances de convivência.
Um dos exemplos mais tocantes
é o de um israelense que procurou
estabelecer contato com seu vizinho palestino. Ele reclama que a
distância de uns poucos metros
que os separam se tornou insuperável. A assimetria aqui não é a de
palestinos em relação aos israelenses, mas de ambos em relação
a um jogo no qual sua ação privada conta cada vez menos.
Sensação semelhante é provocada pelo filme "Sem Precedentes: A Eleição Americana de
2000". O documentário sobre a
eleição que pôs George W. Bush
no poder revela a extensão do esforço abjeto do governador da
Flórida, Jeb Bush, para que seu irmão vencesse no Estado. O aspecto mais importante levantado pela obra, porém, é a manobra para
tirar milhares de eleitores negros,
potencialmente democratas, das
listas de votação. Esse escandaloso casuísmo não encontrou obstáculos sérios na época em que
ocorreu e ainda conta muito pouco para a historiografia americana
da eleição -perdendo de longe
para os defeitos nos sistemas de
votação-, prova de que a assimetria racial nos EUA está mais
sólida do que nunca.
LIMITES E FRONTEIRAS. Mostra do
Festival do Rio 2004. "Reinventando o
Taleban?": Centro Cultural da Justiça
Federal (amanhã, 18h, e dom., 15h);
"Muro": Estação Barra Point 1 (4/10,
14h30) e Espaço Unibanco 3 (5/10, 16h, e
6/10, 23h30); "Sem Precedentes: A
Eleição Americana de 2000": Centro
Cultural da Justiça Federal (hoje, 14h30,
e amanhã, 15h30). Site:
www.festivaldoriobr.com.br.
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Mercado editorial: Lutas de "Angus" vão dos livros à Justiça Índice
|