São Paulo, quinta-feira, 30 de setembro de 2004

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FESTIVAL DO RIO

Documentários mostram abismos raciais, políticos e sociais por trás de grandes acontecimentos midiáticos

Filmes revelam assimetrias de poder insuperáveis

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

A sensação primária causada por alguns dos filmes da mostra "Limites e Fronteiras", no Festival do Rio 2004, é de desconforto. Em certos casos, chega-se à insuportável conclusão de que não há articulação social possível contra as brutais assimetrias de poder.
Há exemplos disso para todos os gostos. Um dos mais interessantes é trazido pela paquistanesa Sharmeen Obaid em "Reinventando o Taleban?". No documentário, a jornalista, radicada nos EUA, investiga um movimento fundamentalista islâmico que domina a vida paquistanesa no norte do país, perto do Afeganistão.
Seu propósito central não é mostrar apenas que a ameaça do islã radical, antes representada pelo Taleban, está ressurgindo sob a forma do MMA (Muttahida Majlis-i-Amal), coligação de partidos religiosos que defendem o império da sharia (lei islâmica). Ela deixa claro que a ameaça nunca deixou de existir e que a principal vítima não são valores ocidentais, mas as mulheres.
Para ilustrar essa assimetria de poder, Obaid submete-se ela mesma à experiência de enfrentar o mundo masculino do fundamentalismo islâmico. O resultado é eloqüente. Em vários momentos do tenso documentário, ela se vê como única mulher no meio de homens que não se vexam de reafirmar a primazia masculina em todos os quadrantes da vida social. Não há negociação possível.
Outra desconcertante impossibilidade é demonstrada pela marroquina Simone Bitton, cidadã francesa e israelense, em "Muro". Por meio de lentas tomadas, ela retrata o asfixiante universo da barreira israelense erguida para conter o terrorismo palestino.
Um assessor do governo israelense, ao justificar o muro, relata a Bitton as incríveis qualidades tecnológicas do empreendimento. A barreira não é apenas um obstáculo de concreto: ela é também um caríssimo prodígio digital.
O contraponto de Bitton, por sua vez, é humano. Os israelenses e palestinos entrevistados se queixam de que essa versão contemporânea da muralha medieval erode as chances de convivência.
Um dos exemplos mais tocantes é o de um israelense que procurou estabelecer contato com seu vizinho palestino. Ele reclama que a distância de uns poucos metros que os separam se tornou insuperável. A assimetria aqui não é a de palestinos em relação aos israelenses, mas de ambos em relação a um jogo no qual sua ação privada conta cada vez menos.
Sensação semelhante é provocada pelo filme "Sem Precedentes: A Eleição Americana de 2000". O documentário sobre a eleição que pôs George W. Bush no poder revela a extensão do esforço abjeto do governador da Flórida, Jeb Bush, para que seu irmão vencesse no Estado. O aspecto mais importante levantado pela obra, porém, é a manobra para tirar milhares de eleitores negros, potencialmente democratas, das listas de votação. Esse escandaloso casuísmo não encontrou obstáculos sérios na época em que ocorreu e ainda conta muito pouco para a historiografia americana da eleição -perdendo de longe para os defeitos nos sistemas de votação-, prova de que a assimetria racial nos EUA está mais sólida do que nunca.


LIMITES E FRONTEIRAS. Mostra do Festival do Rio 2004. "Reinventando o Taleban?": Centro Cultural da Justiça Federal (amanhã, 18h, e dom., 15h); "Muro": Estação Barra Point 1 (4/10, 14h30) e Espaço Unibanco 3 (5/10, 16h, e 6/10, 23h30); "Sem Precedentes: A Eleição Americana de 2000": Centro Cultural da Justiça Federal (hoje, 14h30, e amanhã, 15h30). Site: www.festivaldoriobr.com.br.


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