São Paulo, sexta-feira, 30 de setembro de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

As burrices do pensamento único

Já comentei diversas vezes as fases da sociedade em que predomina o pensamento único. Não vem ao caso repetir as distorções causadas por momentos em que todos se transformavam em Juquinhas de anedota -aquele guri safado que só pensava em sacanagem. Exemplo: o professor mostra ao Juquinha uma caixa de fósforos e pergunta: "Juquinha, isto é uma caixa de fósforos. No que você pensa quando vê uma caixa de fósforos?".
Juquinha lambe os beiços: "Professor, eu penso no seguinte: a caixinha de fósforo está no chão, aí vai passando uma velha, se abaixa para apanhar a caixinha, aí eu venho por trás e... pego a velha de jeito...".
Tenho encontrado centenas de Juquinhas nos últimos dias. Certa vez, faz uns dois ou três anos, fui a Manaus falar a universitários sobre a crise de água doce que ameaça o mundo. Previsões de institutos abalizados garantem que em 2020 não haverá água potável suficiente para matar a sede da população mundial, que deverá andar por volta dos 15 bilhões ou 20 bilhões de seres humanos.
Pesquisei Deus e o Diabo para fazer a palestra, ouvi entendidos, preparei anotações e falei durante 55 minutos sobre o assunto, citando estatísticas e dados geológicos que fucei por aí -modéstia à parte, fiquei por dentro do assunto na medida de minhas possibilidades e deficiências.
Terminada a fala, o mediador abriu a palavra aos estudantes para que fizessem as perguntas que julgassem necessárias para melhor compreensão do tema abordado. Lá de trás, a mão de um jovem se levantou. Logo depois, ele inteiro se levantou para expor a questão que o atormentava e que eu não havia abordado ou abordara mal.
- Por que Paulo Coelho entrou na Academia Brasileira de Letras?
Eu havia pintado um quadro apocalíptico, milhões de seres humanos morrendo de sede, matando-se uns aos outros por uma gota daquilo que os jornais antigamente chamavam de "precioso líquido". Mas o assunto único, naquela ocasião, era a entrada do Paulo Coelho na ABL.
Por cortesia, declarei que ali estava a convite de uma universidade para falar de outra coisa, mas, já que havia inquietação sobre Paulo Coelho, não custava responder e disse o que devia dizer.
Passa o tempo, semana passada, em outra palestra para jovens vestibulandos, o tema que me deram foram dois livros que estavam inscritos no vestibular marcado para o fim do ano: Manuel Bandeira (poemas) e Manuel Antônio de Almeida ("Memórias de um Sargento de Milícias").
Desta vez não foram necessárias pesquisas nem esforço suplementar para falar sobre dois autores que admiro e que tanto me marcaram. Li dois ou três poemas de Bandeira, falei bastante sobre o "Sargento de Milícias", obra que influenciou Machado de Assis e Mário de Andrade, mostrando inclusive que Macunaíma, em sua fase urbana, foi literalmente a continuação do personagem de Manuel Antônio de Almeida, escrito quase cem anos antes.
Dentro da tradição, o mediador abriu a palavra aos vestibulandos, uns quatro ou cinco logo se levantaram e quiseram fazer perguntas. Mal informado, fiquei lisonjeado. Minha palestra havia despertado interesse sobre a obra de Bandeira ou de Manuel Antônio de Almeida. Alvíssaras!
Ledo e ivo engano. Falando quase ao mesmo tempo, os quatro ou cinco jovens mostraram-se decepcionados e até irritados com a manhã que julgavam perdida. Ali estavam esperando que o palestrante falasse da corrupção no governo, da crise no PT, da prisão do Maluf, da cassação do Roberto Jefferson. Lamentavam que um profissional da mídia revelasse tanto e tamanho desdém pela vida nacional, pela sociedade justamente indignada diante de tantos flagelos.
Os jovens ali estavam para ouvir (mais uma vez) uma palavra de repúdio ao descalabro reinante. Haviam perdido a manhã de um sábado (era sábado, ainda por cima) para ouvir amenidades sobre um Rio de Janeiro dos tempos do rei, intrigas de comadres, meirinhos e barbeiros, ou, o que era pior, um poeta defasado evocando um Recife que eles não conheciam nem faziam questão de conhecer.
Isso aconteceu recentemente, mas há pior. Em 1964, fui convidado a fazer uma palestra sobre um clássico do expressionismo alemão, "O Gabinete do Dr. Caligari". Eu havia escrito uns três ou quatro artigos sobre o filme no "Suplemento Dominical" do "Jornal do Brasil" e a Cinemateca do Museu de Arte Moderna promoveu um ciclo sobre o expressionismo alemão.
Lá fui eu, preparado para comentar um dos clássicos do cinema mundial. Era início de março, a crise política fervia, os militares preparavam-se para depor o presidente da República, inaugurando os que vieram a ser chamados de anos de chumbo.
Falei o que devia. Jovens se levantaram e protestaram. Com o país em chamas, como podia um jornalista fazer os outros perderem tempo com um filme de 1919, um doutor maluco que hipnotizava um louco e, por meio desse louco, cometia crimes numa Alemanha sombria e distante?
Foi uma pena. O pensamento único daqueles jovens não percebeu que, na fábula do dr. Caligari, estava o anúncio não apenas do nazismo mas de todos os anos de chumbo que desabam sobre a humanidade.


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