São Paulo, quinta-feira, 30 de setembro de 2010

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NINA HORTA

Conto de um aspirante a escritor


Sentiu uma pontada de fome. Levantou, andou até a cozinha. Vasculhou a geladeira. Vazia, para variar


UM JOVEM leitor de olhos brilhantes, Pietro Santurbano, em Santos, num encontro literário nos moldes da Flip, A Tarrafa Literária 2, me entregou um conto seu. A mesa da qual participei chamava-se Livros de Comer. Meu companheiro foi um inglês interessantíssimo, Mark Crick, que escreveu "A Sopa de Kafka" (ed. Argumento). Uma curiosidade e boa vontade para com o Brasil, no terceiro dia já quase falava português, que parecia lhe entrar pelos poros.
O conto do aspirante a escritor e cozinheiro está aqui abaixo comemorando a festa da tarrafa.
"A embalagem metálica escondia a comida manufaturada por uma indústria alimentícia. O responsável pela receita estudara engenharia alimentar e seu auxiliar, nutrição; discutiram muito, entraram em choques ao buscar o equilíbrio na quantidade e qualidade, pesquisaram os níveis de gorduras agregadas, assim como a validade e o armazenamento do produto.
As discussões continuaram com o financeiro, com a logística e o comercial, os recursos humanos, sem contar os cafés da tarde e os almoços de domingo. As negociações com os pontos de venda foram difíceis e reduziram os lucros. Um trabalho diário e minucioso implementou o método de produção. O desenho das embalagens e a estratégia publicitária se fizeram muito desgastantes, o atraso na entrega deixou insones todos os envolvidos e o posicionamento do produto dentro das lojas foi pesquisado e renegociado diversas vezes, assim como o preço final.
Mas enfim, ali estava.
Ele assistia à televisão e sentiu uma pontada de fome. Levantou, andou até a cozinha, puxando as calças largas para cima. Vasculhou a geladeira e, suspeita confirmada... Vazia, para variar. Foi até o quarto, pegou a carteira. Fotos, cartões de visitas, recibos fiscais e algumas moedas. Agasalhou-se e desceu as escadas do prédio num rápido trote. Andou até o único mercado que abria aos domingos e começou a busca pela prateleira esquerda. Achou no refrigerador, ao lado direito, uma simpática lasanha.
Ao dirigir-se à caixa, estava, sem saber, ajudando os envolvidos naquele projeto-lasanha. Pegou o recibo, não colocou o pacote num saco plástico do mercado por questões ambientais, refez o caminho, só que agora de volta.
Esperançoso, entrou em casa, tirou o agasalho, acomodou-se. Primeiro leu as instruções com cuidado. No seu rosto podia-se ver um pouco de dúvida, mas seu estômago certamente pedia comida. Colocou a lasanha num recipiente adequado, como indicava a bula do alimento e sem problemas deixou-a bem ajustada no prato do micro-ondas. Eram 17 minutos de espera.
Limpou uns respingos de molho de tomate, jogou fora a embalagem brilhante e o tempo passou rápido. Ele e a lasanha pronta foram para a frente da televisão. Cortou com a faca, espetou com o garfo, assoprou e mastigou.
Sua cara transformou-se num estudo de decepção. Ah, se conhecessem sua avó, todo esse pessoal da produção teria se mancado que o número 17, 17 minutos, 17, qualquer 17, ora, como não sabiam que o número 17 na Itália traz má sorte, traz azar. Porca miseria, "cazzo", quase chorou, imaginou toda uma linha de produção de senhoras robustas, lenço na cabeça, vago buço, mãos fortes de bater a massa e murmurou baixinho, mas muito frustrado: "Nonna, cosa fare?"."

ninahorta@uol.com.br


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