São Paulo, quarta, 30 de setembro de 1998

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Cidade canibaliza o belo clássico no Paço das Artes

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

O filósofo marxista Georg Lukács (1885-1971) detestava a arte de vanguarda. Para ele, tudo o que existe de fragmentário, de incoerente, de hermético na arte moderna não passava de um truque ao qual só especialistas têm acesso.
Mais que isso, considerava que muito do modernismo tinha, na verdade, o efeito de uma piada, de uma anedota: o contraste, o choque, a originalidade, coisas buscadas por um artista moderno, tendiam a esgotar-se em si mesmas, perdendo a graça depois de compreendidas (ou não).
Será verdade? Pode-se procurar uma resposta na exposição "City Canibal", no Paço das Artes, que também prepara o nosso espírito para a Bienal, a ser inaugurada nesta sexta.
Há obras ali que são mesmo humorísticas. Expõe-se, por exemplo, uma cidadezinha, com quarteirões e ruas, feita unicamente de casas de cachorro, dispostas pelo chão liso e limpo do lugar.
O efeito desta obra de Rochelle Costi, "Condomínio", é predominantemente cômico. O que significa? Aponta para a favelização da cidade, para o problema da falta de segurança, para a imbecilidade canina da classe média.
Os "conteúdos" desta instalação podem ser vários; seu efeito, de surpresa, deslocamento e crítica, é certeiro.
O que não se tem -e provavelmente é isto o que Lukács no fundo estava querendo- é um convite àquela contemplação silenciosa, à hipnose e ao maravilhamento que se associam à experiência estética clássica.
Compreendido o "conceito", a "idéia" de uma obra -por mais ambígua que seja-, é como se a obra em si, sua aparência, se dissolvesse.
Talvez por isso mesmo não sejam muito verdadeiras as críticas quanto à "incompreensibilidade" da arte contemporânea. Muitas obras nos deixam sem resposta, é verdade.
Mas é muito comum que o contrário ocorra: um conceito, uma idéia podem ser frequentemente associados a uma instalação ou escultura.
No próprio catálogo de "City Canibal", a idéia de cidade se divide em vários módulos: "ícones do desejo", "identidade, padronização", "fluxos", "ocupação"... Não é raro que idéias assim amplas se entrecruzem, e, se uma obra pode ser associada a um ou mais temas desse tipo, o problema da incompreensibilidade diminui bastante.
Quem entra na exposição "City Canibal" passa por uma espécie de pórtico retangular. Na verdade, o visitante está sendo fotografado. Pode conferir a própria fotografia, num site da Internet, apresentado num computador à disposição do público.
No site, há também gravuras antigas, mostrando cenas de canibalismo. Numa dessas gravuras, um índio arranca a coluna vertebral de sua vítima.
A "piada", o humor dessa obra de Gilbertto Prado, está no fato de que somos fotografados (coluna social) e que nossa fotografia está ao lado de imagens de índios canibais (arrancando a coluna vertebral do homem branco).
Mas, se fica evidente a crítica, o trocadilho, não podemos dizer que a obra se esgota nisso. Há a efemeridade do registro -nossas imagens duram pouco no computador, canibalizadas... pelo tempo. Justamente, o que há de contemporâneo na tecnologia utilizada entra em contraste com os índios da gravura. A modernidade enganosa da cidade grande -espaço de violência e de progresso- poderia assim estar "tematizada" nesse pórtico da exposição.
Conteúdos, interpretações não faltam. Acontece que, por vezes, o anedótico cede, em "City Canibal", a obras que convidam à contemplação estética mais tradicional, mais silenciosa; ao contato com a "beleza", se pudermos empregar o termo sem mais explicações.
Há, por exemplo, um vídeo de Arthur Lescher, intitulado "Memória". São sete televisores em ação. Cada um deles corresponde a uma letra da palavra. O espectador vê, na tela, um pincel ou lápis traçando caprichosamente o "m", o "e", o "m" de novo, o "ó" da palavra "memória". Acontece que cada letra, no vídeo, aparece traçada sobre um fundo negro, que percebemos ser feito de água ou de material viscoso.
Assim, cada letra se fixa e desaparece sobre esse fundo, faz- se puro traço evanescente nas sete telas de TV. É preciso parar e ficar olhando para ver, nas liquefações da caligrafia, a palavra "memória". As letras dançam e se apagam, nada mais.
É como se, além do "conceito", da "idéia" que evoca, esse vídeo criasse, digamos assim, um jogo, uma aparência, um arabesco que não se esgotam no mero sentido, no intuito crítico, no efeito de "interpretabilidade" que possa ter.
Já Ricardo Ribenboim refaz o mito da coca-cola incontáveis vezes. Reproduz a forma da garrafa como se fosse uma escultura puríssima, faz garrafas de barro, imagina tampinhas gigantescas, projeta numa tela de computador algo como se fosse uma cena de sexo entre duas garrafas... Enfim, recria o ícone americano não apenas como se a arte fosse mera questão de ironia e de menção (Andy Warhol), mas apostando na possibilidade formal, na beleza da variação plástica.
Em "City Canibal", há muita mensagem a ser analisada: o caos urbano, a antropofagia, a contaminação, a relação entre centro e periferia, entre dominante e dominado. Tudo até certo ponto compreensível. Mas é de perguntar se, hoje, a mesma e clássica aposta no "belo", que parecia tão contestada, não está presente e se não é possível visitar uma exposição de arte contemporânea e encontrar, além da anedota, do trocadilho, do choque, da "idéia", obras que sejam tão encantatórias, hipnóticas e "bonitas" quanto as de qualquer outra época.
Vendo "City Canibal", perco-me entre o que está para ser contemplado e o que há para ser entendido. Perco-me entre a idéia e a aparência, entre conceito e beleza, entre estética e humor. Mas perder- se é o que acontece com toda pessoa, em toda cidade, canibal ou não. Perder-se (ao risco de ser devorado) é o que nos propõe o Paço das Artes. Experimente.
² Correção
Referi-me, há coisa de três ou quatro semanas, a um livro chamado "Crítica dos Críticos". Seu autor é Marcel Pagnol, e não Maurice, como estava no artigo.



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