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Cidade canibaliza o belo clássico no Paço das Artes
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
O filósofo marxista Georg
Lukács (1885-1971) detestava a arte de vanguarda. Para ele, tudo o que existe de
fragmentário, de incoerente,
de hermético na arte moderna não passava de um truque ao qual só especialistas
têm acesso.
Mais que isso, considerava
que muito do modernismo
tinha, na verdade, o efeito
de uma piada, de uma anedota: o contraste, o choque,
a originalidade, coisas buscadas por um artista moderno, tendiam a esgotar-se em
si mesmas, perdendo a graça
depois de compreendidas
(ou não).
Será verdade? Pode-se procurar uma resposta na exposição "City Canibal", no Paço das Artes, que também
prepara o nosso espírito para a Bienal, a ser inaugurada
nesta sexta.
Há obras ali que são mesmo
humorísticas. Expõe-se, por
exemplo, uma cidadezinha,
com quarteirões e ruas, feita
unicamente de casas de cachorro, dispostas pelo chão liso
e limpo do lugar.
O efeito desta obra de Rochelle Costi, "Condomínio", é predominantemente cômico. O
que significa? Aponta para a
favelização da cidade, para o
problema da falta de segurança, para a imbecilidade canina
da classe média.
Os "conteúdos" desta instalação podem ser vários; seu
efeito, de surpresa, deslocamento e crítica, é certeiro.
O que não se tem -e provavelmente é isto o que Lukács
no fundo estava querendo- é
um convite àquela contemplação silenciosa, à hipnose e ao
maravilhamento que se associam à experiência estética
clássica.
Compreendido o "conceito",
a "idéia" de uma obra -por
mais ambígua que seja-, é
como se a obra em si, sua aparência, se dissolvesse.
Talvez por isso mesmo não
sejam muito verdadeiras as
críticas quanto à "incompreensibilidade" da arte contemporânea. Muitas obras nos
deixam sem resposta, é verdade.
Mas é muito comum que o
contrário ocorra: um conceito,
uma idéia podem ser frequentemente associados a uma instalação ou escultura.
No próprio catálogo de "City
Canibal", a idéia de cidade se
divide em vários módulos:
"ícones do desejo", "identidade, padronização", "fluxos",
"ocupação"... Não é raro que
idéias assim amplas se entrecruzem, e, se uma obra pode
ser associada a um ou mais temas desse tipo, o problema da
incompreensibilidade diminui
bastante.
Quem entra na exposição
"City Canibal" passa por uma
espécie de pórtico retangular.
Na verdade, o visitante está
sendo fotografado. Pode conferir a própria fotografia, num
site da Internet, apresentado
num computador à disposição
do público.
No site, há também gravuras
antigas, mostrando cenas de
canibalismo. Numa dessas
gravuras, um índio arranca a
coluna vertebral de sua vítima.
A "piada", o humor dessa
obra de Gilbertto Prado, está
no fato de que somos fotografados (coluna social) e que
nossa fotografia está ao lado
de imagens de índios canibais
(arrancando a coluna vertebral do homem branco).
Mas, se fica evidente a crítica, o trocadilho, não podemos
dizer que a obra se esgota nisso. Há a efemeridade do registro -nossas imagens duram
pouco no computador, canibalizadas... pelo tempo. Justamente, o que há de contemporâneo na tecnologia utilizada
entra em contraste com os índios da gravura. A modernidade enganosa da cidade
grande -espaço de violência
e de progresso- poderia assim estar "tematizada" nesse
pórtico da exposição.
Conteúdos, interpretações
não faltam. Acontece que,
por vezes, o anedótico cede,
em "City Canibal", a obras
que convidam à contemplação estética mais tradicional,
mais silenciosa; ao contato
com a "beleza", se pudermos
empregar o termo sem mais
explicações.
Há, por exemplo, um vídeo
de Arthur Lescher, intitulado
"Memória". São sete televisores em ação. Cada um deles
corresponde a uma letra da
palavra. O espectador vê, na
tela, um pincel ou lápis traçando caprichosamente o
"m", o "e", o "m" de novo, o
"ó" da palavra "memória".
Acontece que cada letra, no
vídeo, aparece traçada sobre
um fundo negro, que percebemos ser feito de água ou de
material viscoso.
Assim, cada letra se fixa e desaparece sobre esse fundo, faz-
se puro traço evanescente nas
sete telas de TV. É preciso parar e ficar olhando para ver,
nas liquefações da caligrafia, a
palavra "memória". As letras
dançam e se apagam, nada
mais.
É como se, além do "conceito", da "idéia" que evoca, esse
vídeo criasse, digamos assim,
um jogo, uma aparência, um
arabesco que não se esgotam
no mero sentido, no intuito
crítico, no efeito de "interpretabilidade" que possa ter.
Já Ricardo Ribenboim refaz
o mito da coca-cola incontáveis vezes. Reproduz a forma
da garrafa como se fosse uma
escultura puríssima, faz garrafas de barro, imagina tampinhas gigantescas, projeta numa tela de computador algo
como se fosse uma cena de sexo entre duas garrafas... Enfim, recria o ícone americano
não apenas como se a arte fosse mera questão de ironia e de
menção (Andy Warhol), mas
apostando na possibilidade
formal, na beleza da variação
plástica.
Em "City Canibal", há muita
mensagem a ser analisada: o
caos urbano, a antropofagia, a
contaminação, a relação entre
centro e periferia, entre dominante e dominado. Tudo até
certo ponto compreensível.
Mas é de perguntar se, hoje, a
mesma e clássica aposta no
"belo", que parecia tão contestada, não está presente e se
não é possível visitar uma exposição de arte contemporânea e encontrar, além da anedota, do trocadilho, do choque, da "idéia", obras que sejam tão encantatórias, hipnóticas e "bonitas" quanto as de
qualquer outra época.
Vendo "City Canibal", perco-me entre o que está para ser
contemplado e o que há para
ser entendido. Perco-me entre
a idéia e a aparência, entre
conceito e beleza, entre estética e humor. Mas perder- se é o
que acontece com toda pessoa,
em toda cidade, canibal ou
não. Perder-se (ao risco de ser
devorado) é o que nos propõe o
Paço das Artes. Experimente.
²
Correção
Referi-me, há coisa de três
ou quatro semanas, a um livro
chamado "Crítica dos Críticos". Seu autor é Marcel Pagnol, e não Maurice, como estava no artigo.
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