São Paulo, sábado, 30 de outubro de 2004

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RODAPÉ

Harmonias geométricas de um parangolé poético

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Um dos predicados notáveis de "Rua do Mundo", de Eucanaã Ferraz, é a musicalidade de seus poemas. Talvez essa impressão seja reforçada pelo fato de ser ele autor, com Antonio Cicero, de uma antologia de Vinicius de Moraes (poeta que sempre atuou na MPB) e organizador de "Letra Só", livro que reúne as composições de Caetano Veloso (provando, para quem souber ler, que as letras do cantor baiano podem ser ouvidas como poesia pura).
Mas a musicalidade a que me refiro é de outra ordem e nada tem a ver com o cancioneiro popular. Eucanaã Ferraz imprime a seus versos uma cadência seca, em que cortes abruptos fazem reverberar o ritmo pelo efeito de sua interrupção. Música não-melódica, portanto, que preserva a oralidade da poesia, mas cuja harmonia parece advir das proporções geométricas -como no poema "Arranha-céus":
"A água parada/ dos vidros/ (a sede estanca diante dela,/ de sua retidão salina).// O fogo parado/ dos vidros/ (chama que não se exaure,/ agora inteiramente agora).// A água fria,/ o fogo frio/ (sem reverso, dentro é fora)/ das altas lâminas:// lagos de quartzo/ estendidos ao vento imparcial da cidade; fogos silenciosos, parados,/ do artifício".
Pode-se ver aqui, em miniatura, procedimentos recorrentes nesse livro em que a paisagem urbana é simultaneamente tema e metáfora: a atenção obsessiva ao mundo objetivo como modo de disciplinar a expressão, sem contudo deixar de expressar conteúdos que estão para além daquilo que é descrito; versos que transpõem, para o âmbito verbal das nomeações, a estrutura tridimensional da percepção visual (como esses arranha-céus mostrando que "dentro é fora").
Já que a referência a antecessores literários sempre torna claros os vetores de uma poética, pode-se dizer que Eucanaã Ferraz não é um autor experimental, de extração pós-concreta, em que a linguagem tem relação de isomorfismo com a materialidade do que é representado, ao ponto de dissolver a própria representação.
Seus poemas, ao contrário, utilizam a realidade concreta (no caso, a cidade) como experiência fenomenológica do sujeito que a contempla, que nela se projeta -mas que a ela se limita. Nesse sentido, estão mais próximos da "lição de poesia" de João Cabral de Melo Neto e do neoconcretismo.
Em "Rua do Mundo", há remissões explícitas a esses momentos da literatura e das artes visuais. A série "A um Toureiro Morto" elege um tema caro a Cabral e "O Cobogó" (tijolo perfurado, usado em construções rústicas) retoma os paralelepípedos homônimos do poema cabralino "Coisas de Cabeceira, Recife". E a aproximação, igualmente cabralina, entre o poeta e o arquiteto aparece nos versos de "Ronchamp (Outra Fábula de um Arquiteto)", homenagem a Le Corbusier: "No cume da colina,/ como se à mesa da santa ceia:/ capela-carapaça".
Em outros momentos do livro, porém, as distinções entre construção e arquiteto, habitáculo e corpo, são canceladas -como nos poemas "Issey Miyake" (sobre o estilista japonês) e "Das Covas": "morador e habitação/ um só metro;// mesma fôrma: fato e conceito./ Avalia: coisa e palavra/ no mesmo prato".
E em "Uma Coisa Casa", Eucanaã Ferraz parte dos "parangolés" de Hélio Oiticica para transformar as vestimentas-esculturas do artista neoconcreto em figuração da linguagem como pele, do artifício como casa. Apoteose de "Rua do Mundo", esse poema recapitula o trajeto do autor de "Martelo" e "Desassombro" (livro que tinha maior dose de lirismo e humor).
Começa com uma série de trocadilhos típicos do poema-piada modernista -"No início/ era apenas/ lé com lé/ cré com cré/ e variações/ disso./ Depois fez-se o Hélio./ E Hélio,/ seu Parangolé" ("Hélio" sendo também uma referência ao Sol da mitologia grega)- e continua em variações estonteantes, fundindo filosofia e tropicalismo numa cosmologia poética atravessada pela ironia:
"O Parangolé/ será de si mesmo/ o sal, a Sé./ Pois que seja a linguagem/ -como quer o filósofo-/ a morada do ser;// mas eu vos digo,/ em verdade, que/ o Parangolé é a casa do é".


Rua do Mundo
    
Autor: Eucanaã Ferraz
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 31 (128 págs.)



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