São Paulo, sábado, 30 de outubro de 2004

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CINEMA

Cineasta israelense é homenageado com exposição de fotos, lançamento de livro e retrospectiva de seus filmes na Mostra

Amos Gitai arquiteta sua história na tela

CLAUDIO SZYNKIER
FREE-LANCE PARA A FOLHA

No saguão do hotel, uma cena que parecia um sonho cinéfilo: três senhores trocavam idéias. Eram apenas o iraniano Abbas Kiarostami, o português Manoel de Oliveira e o israelense Amos Gitai. Do sonho à realidade, a reportagem pôde ficar a sós com o israelense, que abordou, em entrevista exclusiva para a Folha, alguns de seus temas de interesse como realizador (Estado de Israel, a guerra, a morte) e, com carinho, falou de Sam Fuller.
 

A MORTE
A morte é um elemento muito entranhado na concepção judaica, daí seu eco no meu cinema. Um exemplo é a gramática. No hebraico, o presente, muito condensado, é só uma transição entre o pretérito e o futuro. O judaísmo sempre olha para o passado, mas também para o que ainda não foi feito, para o que vem - o Messias, por exemplo- e, conseqüentemente, para a morte. Tive uma experiência profunda com morte. Em 1973, no Yom Kippur, eu era soldado. Meu helicóptero foi bombardeado e quase morri. Eu fazia arquitetura e fui filmar.

ARQUITETURA
A arquitetura tem muito a ver com o cinema. Ambos consistem em processos iniciados mentalmente e através do texto, mas concluídos com a construção de algo, ou com a transformação em imagens. Documentários, porém, são arqueologia: você tem de escavar. Às vezes, surge um objeto imprevisto que muda a pesquisa.

PROJETO ISRAELENSE
Essencialmente, o projeto de Israel é interessante, porque coloca os judeus ligados à realidade. Os judeus não são mais "tema" da história, nos extermínios, nas perseguições. Ao contrário, modelam seu próprio destino, o que implica em enganos, falhas. Entra-se no domínio das contradições, e a mais complicada está associada a como como gerir o poder, do ponto de vista político e militar. E usar o poder contra os outros é como um veneno, que vai te intoxicar. Os judeus devem estar prontos para ver criticada a forma de gerência. Eu exercito, em meus filmes, essa crítica, que é apenas um reflexo de amor.

UTOPIA
Os meus avós eram russos socialistas, queriam construir a utopia: os kibutz, o socialismo dos sonhos. Minha mãe, que nasceu em 1909, não chorava pelas coisas que aconteceram, mas por aquelas que poderiam ter acontecido. As coisas escaparam do projeto original israelense. Muito deu errado, houve a brutalização da utopia. Mas há de se olhar para o futuro. Ele pode trazer surpresas como reconciliação e reconstrução.

CINEASTA DA HISTÓRIA
Procuro representar em tela esse enredo histórico chamado Israel. Me sinto, desde 1973, como uma testemunha. Fassbinder, Ford, Rossellini, cineastas que eu admiro muito, estiveram muito ligados a esse tipo de processo.

SAM FULLER E A GUERRA
Em Paris, onde morei nos 80, estava Samuel Fuller, que acabou participando de dois filmes meus. Sam disse, um dia, que eu deveria filmar o que vivi na guerra. "Mas isso daria um filme de gênero, de guerra, com o qual não estou habituado", respondi. Ele retrucou: "Amos, não olhe para o cinema, olhe para sua própria experiência, e filmar ainda será ótima terapia".
Na guerra, nunca se sabe o que está acontecendo. O cotidiano é totalmente modificado, violentado. Me nutri do espírito Fuller de retrato do sentimento do caos. Sam foi quem melhor representou a experiência de guerra.
Hollywood, diferente, vê a guerra como uma instituição suntuosa, com componentes de glamour. Só que guerra é sobre destruir o ser humano.


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