São Paulo, sábado, 30 de outubro de 2004

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"CONTOS E NOVELAS REUNIDAS"

Ainda pouco conhecido, autor é pioneiro da literatura de imigração judaica no Brasil

Edição resgata a ficção do "maldito" Rawet

BERNARDO AJZENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA

As moscas e o cheiro ruim levaram os vizinhos a pedir ajuda. Quando os bombeiros arrombaram a porta, encontraram o corpo num canto do apartamento, em Sobradinho, cidade-satélite de Brasília. O homem, um cigarro à mão, cercado por velas queimadas e livros de filosofia, morto havia já quatro dias, foi enterrado inicialmente como indigente.
Essas foram, conforme relatos já publicados, as circunstâncias da morte de Samuel Rawet (1929-1984), um dos mais curiosos e menos conhecidos dentre os melhores nomes da ficção brasileira do século 20.
Nascido em Klimontow, na Polônia, Rawet chegou ao Brasil em 1936 e viveu nos subúrbios pobres da zona norte do Rio de Janeiro até os "vinte e poucos anos", como declarou.
Formado em engenharia em 53, integrou nos anos 50 e 60 a equipe de calculistas que, com Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, ergueu os principais edifícios de Brasília, onde viveu a partir de 1962 (com um interregno carioca entre 1970 e 1974). Os testemunhos dão conta de um homem solitário, de trato difícil, andarilho tresloucado pelas ruas da capital federal.
Após flertar e se frustrar com o teatro, Rawet tornou-se nacionalmente conhecido com seu livro de estréia, "Contos do Imigrante", de 1956. Vieram depois mais quatro coletâneas e duas novelas, além de participação em antologias, volumes de ensaios e artigos.
Nos "Contos do Imigrante", obra pioneira da literatura de imigração judaica no Brasil, as cinco primeiras narrativas têm como temas a inadequação, o estranhamento, a culpa, a dor de emigrados da Europa Central, já incorporada, destaque-se, a "experiência" do Holocausto. As outras cinco transpiram as mesmas ansiedades, o mesmo dolorido isolamento, o mesmo sufoco suburbano, porém com protagonistas e linguajar "locais" (imigrantes nordestinos, gente pobre, negros).

Características
Esse primeiro livro delineia o restante da obra ficcional de Rawet, cujas características, como resume André Seffrin no prefácio da reunião de suas obras de ficção publicada agora pela Civilização Brasileira, são a presença de "personagens imersos na angústia da inadaptação e da incomunicabilidade, a condição ambígua do imigrante (cindido entre dois mundos, duas linguagens), a experiência dramática do exílio (a condição judaica), a desagregação social, a marginalidade, a alienação".
Acrescentem-se doses de delírio, conflitos familiares, metalinguagem e a sofreguidão pungente de uma ousada exposição de ódio, tendo como cenário especialmente o Rio, cuja geografia é fartamente mencionada.
O mal-estar do autor com o mundo e consigo próprio (uma "tenebrosa intimidade com a angústia", diz Regina Igel em "Imigrantes Judeus/Escritores Brasileiros", Perspectiva) se expressa de modo radical na relação conturbada que ele estabelece, ao menos desde os 15 anos de idade, com sua origem judaica, com a qual rompe violentamente no artigo "Kafka e a Mineralidade Judaica ou a Tonga da Mironga do Kabuletê" (1977).
"Meu maior conflito, e não sei se isso me enriquece ou empobrece, é pessoal, e ligado à minha condição de judeu, ou de ex-judeu, que mandou judaísmo e ambiência judaica às favas", afirmou Rawet ao "Suplemento Literário de Minas Gerais", em 1979.
A virulência, como teria de ser num criador visceral, marca também a fatura singular de sua ficção. Ao destacar o hermetismo do texto de Rawet, Berta Waldman, em "Entre Passos e Rastros" (também da Perspectiva), sintetiza seus traços lingüísticos:
"A economia do estilo, a elipse, a organização sincopada da frase, a tendência alusiva que remete a sentidos fora das margens do texto formam um sistema cerrado que espanta o leitor habituado a ser conduzido pela mão".
Um exemplo, da novela "Abama", de 1964:
"(...) Mas o instante era o de sua passagem, e com a descida, talvez nunca mais voltasse àquela rua, arrastava e cosia com dois olhos e dois ouvidos os fiapos que o acaso lhe lançara, e que, provavelmente, algum dia, devolveria com um grito, assim como o grito de parturiente, ou o grito de dor de quem está sendo aliviado de terrível mal, devolveria com um grito um vasto manto tecido de longas caminhadas e de noites vazias (...)".

Distúrbios
Há certo consenso no sentido de que os ensaios e as especulações filosóficas de Rawet não atingem a altura de sua ficção e que muito se devem, assim como seu comportamento (era visto nas ruas de Brasília com uma gaiola para "prender os ratos judeus"), a um avanço gradual do que seriam seus "distúrbios mentais".
Em qualquer hipótese, a oportuna reunião de seus contos e novelas resgata um polêmico e quase esquecido grande autor, que Alfredo Bosi, ao citar "Contos do Imigrante" na "História Concisa da Literatura Brasileira", coloca dentre os "signos de que esta [a ficção introspectiva, em crise] vem entrando numa era de pesquisa estética e de superação de um "realismo" menor, convencional". Não é para qualquer um.


Bernardo Ajzenberg é autor dos romances "A Gaiola de Faraday" e "Variações Goldman", ambos pela editora Rocco, entre outros livros, e assessor executivo do Instituto Moreira Salles.

Contos e Novelas Reunidas
    
Autor: Samuel Rawet
Editora: Civilização Brasileira
Quanto: R$ 49,90 (490 págs.)



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