São Paulo, sábado, 30 de outubro de 2010

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CRÍTICA ROMANCE

McCarthy investiga esquizofrenia europeia

Ambientado na Inglaterra da Primeira Guerra, "C" acompanha anti-herói com camadas sobrepostas de sentidos

DANIEL BENEVIDES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Não é todo dia que se lê uma história que relaciona incesto, insetos e telégrafos. Por causa desse humor levemente surrealista, o inglês Tom McCarthy vem sendo comparado a Thomas Pynchon, Samuel Beckett e Roberto Bolaño.
Faz sentido. Em "C", seu terceiro romance, trocadilhos curiosos pontuam a narrativa assim como cenas de beleza improvável e disfarçadas referências literárias num jogo constante com o leitor. Em linhas gerais, é um clássico "bildungsroman" (romance de formação).
Mas também poderia ser descrito como obra conceitual sobre as múltiplas possibilidades da comunicação. Ou ainda um estudo sobre o espírito esquizofrênico que tomou conta da Europa no começo do século passado, em que se alternavam a euforia das descobertas e a violência dos conflitos.
O cenário inicial é um idílico condado na Inglaterra, onde vive Samuel Carrefax, um inventor obcecado por ondas eletromagnéticas, que também ensina crianças surdas a falar. A autodestrutiva Sophie é sua filha mais velha, um gênio em história natural e química.
Nosso anti-herói, Serge, é o assistente da irmã em experiências que também incluem brincadeiras sexuais (não parece à toa que o nome Serge coincida com o do paciente neurótico de "O Homem dos Lobos", famoso caso descrito por Freud). Mal saído da adolescência, Serge é convocado para a Primeira Guerra, onde atua em missões aéreas de localização das tropas germânicas.
Ao contrário dos colegas, que sentem medo e morrem como moscas, ele vê o conflito como experiência estética e sensorial. Chega a imaginar seu corpo derretendo e se misturando à fuselagem colorida do avião e a ouvir, no som repetido dos tiros, o ritmo da poesia de Friedrich Hölderlin (impossível não pensar no J. G. Ballard de "Crash" e "Império do Sol").
Ao voltar à vida civil, envolve-se com uma atriz e passa a frequentar o "demi-monde" londrino, em que doses generosas de cocaína e heroína se misturam a sessões de espiritismo barato e sodomia misógina, no melhor estilo "Je T'Aime, Moi Non Plus" (de mais um Serge, o cineasta Gainsbourg).
Descrições pouco ortodoxas (os personagens são reconhecidos mais pelos gestos do que pelas feições) e digressões curiosas (sobre a teoria das cores de Goethe, por exemplo, ou a captação de sinais dos mortos) mantêm o leitor intrigado até a sequência final, em que Serge parte para uma exploração paródica entre as pirâmides do Egito.

PEDRA DE ROSETTA
Fechado o livro, fica a impressão de que o "C" é uma literária pedra de Rosetta, com camadas sobrepostas de signos e sentidos, o que deve agradar os gregos, mas fazer com que os troianos -avessos a qualquer sinal de pretensão- torçam o nariz.
O certo é que, desde o primeiro livro ("Remainder", de 2005) McCarthy vem mostrando que está longe de ser um escritor comum, o que não é pouco.

C

AUTOR Tom McCarthy
EDITORA Random House
QUANTO R$ 45, em média, na www.amazon.com (320 págs.) AVALIAÇÃO bom


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