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GASTRONOMIA
Frida Kahlo nos ensina o que comer no dia de Finados
NINA HORTA
Colunista da Folha
Todo ano, na época de Finados,
fico me descabelando nesta coluna
por saber pouco ou nada sobre
costumes funerários no Brasil, costumes de comidas. Já falamos sobre velórios ingleses em que se serviam cerveja e bolo, ou vinho e biscoitos, do tipo de pão-de-ló torrado no forno para ser mergulhado
no cálice de vinho do Porto. Como
se não bastasse, os vivos levavam
para casa, de lembrança, uma espécie de bem-casado, envolvido
em papel com símbolos de caveiras, ampulhetas, ossos cruzados e
fechados com lacre de cera preta.
Cada país dos Balcãs tem sua receita de koliva, doce feito de trigo
cozido, servido em assadeira com a
parte superior desenhada com palavras alusivas ao dia de Finados,
escritas com o cabo da colher.
Em Portugal a família tomava
parte da "patuscada mortuária"
depois do enterro, com pão mal
cozido para encher a barriga, queijo e figos.
Um leitor, que não deu nome e
endereço, condoído da minha ignorância, mandou um xerox pequeno, acho que de Hildegardes
Vianna, com a descrição do café da
manhã dos mortos na missa de sétimo dia, provavelmente na Bahia.
O pessoal acordava de madrugada. Era só quebrar e ralar coco, pilar arroz, abanar o fogão à lenha ou
a carvão. Fogo pronto, cozinhava-se fruta-pão, aipim, inhame, batata-doce ou banana-da-terra. Outros tratavam dos bolos e do cuscuz enquanto a casa era lustrada, a
louça lavada, cada canto polido e
esfregado. Estendia-se a melhor
toalha na mesa de jantar e a família
de luto fechado partia para a igreja.
E para a missa.
A tensão aumentava imediatamente. Seria a comida suficiente?
Arrumavam-se os pratos com o
cuscuz de arroz, de milho, tapioca,
mandioca, a fruta-pão cozida, a
banana-da-terra, as batatas-doces.
Não faltavam beijus, biscoitos e até
um bom queijo, pão e manteiga.
Na volta, os convidados chegavam esfaimados, já se sentando
sem convite, mesmo antes de aparecerem os bules com o leite, o chá,
o café. Comia-se muito. Organizava-se depois a romaria ao túmulo.
Quando o café da manhã se estendia, e a visita ao cemitério passava
para a tarde, era preciso providenciar o almoço, como uma bacalhoada com leite de coco e dendê,
feijão de leite, arroz-de-viúva. Às
vezes um peixão em postas, acompanhado de bom vinho.
Abriam-se janelas e portas. Entrava o ar fresco, primas de longe
propunham prolongar a visita por
mais uns dias para distrair os parentes. A vida continuava.
Os ritos, sejam sagrados ou profanos, ajudam no processo do luto.
Na cidade grande tentamos fugir
da dor eliminando o mais que
possível os rituais, quase escondendo o morto sem honrá-lo.
Fico de queixo caído ao ver a naturalidade com que os mexicanos
lidam com a morte, com enterros,
defuntos e Finados. Esses cuidados, carinhos e boa convivência
com os mortos começou em 1563,
quando o beato Sebástian de Aparicio, frade missionário, começou
uma tradição de cerimônias funerárias junto aos índios. Eles as
aceitaram imediatamente, pois vinham de encontro aos seus próprios costumes de honrar seus
mortos.
O tema estimulava a imaginação
popular, que se empenhava na
preparação de pratos especiais. As
mesas formavam o fulcro, o centro da festa.
Decoradas como altares com vela votivas, candelabro, incenso. A
flor preferida era a calêndula, e o
capricho maior ia para as figurinhas de açúcar representando crânios, ossos, esqueletos, demônios,
símbolos da morte e procissões de
enterro com todos seus figurantes,
como nossas lapinhas e presépios.
As padarias entraram no espírito da coisa e vendem até hoje o pão
dos mortos, um tipo de bolo de farinha de trigo, fermento, ovo, banha e açúcar, água de flor de laranjeira, casca de laranja e anis, polvilhado com açúcar e com dois ossos cruzados por cima.
Vale a pena comprar o livro "Fridas Fiestas", da editora Potter, de
Guadalupe Rivera, filha
de Diego Rivera, que
viveu com Frida
Kahlo e Diego em
Coyocán, México. Não dá para
acreditar na
mesa de Finados que a artista aprontava. Nas vésperas saía de
manhã para
as compras de
comida e, à
tarde, para encomendar caveiras e
esqueletos dançantes de
papel machê que eram tidos como verdadeiras
obras de arte.
No centro da mesa ia
um prato grande com os
frutos e nozes preferidos
pela mãe dela, limões,
tangerina, cana-de-açúcar, amendoins. Ao lado, a imitação de um
túmulo formado por flores de papel com um retrato da mãe de Frida, com quatro velas nos cantos.
Durante o dia serviam-se as comidas tradicionais mexicanas e,
de manhã, chocolate, pães dos
mortos, biscoitos de ossinhos, tortillas e feijões.
E os feijões, "fave dei morti", importantíssimos em muitos Finados... ficam para o ano que vem, se
Deus quiser.
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