São Paulo, sexta, 30 de outubro de 1998

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GASTRONOMIA
Frida Kahlo nos ensina o que comer no dia de Finados

NINA HORTA
Colunista da Folha

Todo ano, na época de Finados, fico me descabelando nesta coluna por saber pouco ou nada sobre costumes funerários no Brasil, costumes de comidas. Já falamos sobre velórios ingleses em que se serviam cerveja e bolo, ou vinho e biscoitos, do tipo de pão-de-ló torrado no forno para ser mergulhado no cálice de vinho do Porto. Como se não bastasse, os vivos levavam para casa, de lembrança, uma espécie de bem-casado, envolvido em papel com símbolos de caveiras, ampulhetas, ossos cruzados e fechados com lacre de cera preta.
Cada país dos Balcãs tem sua receita de koliva, doce feito de trigo cozido, servido em assadeira com a parte superior desenhada com palavras alusivas ao dia de Finados, escritas com o cabo da colher.
Em Portugal a família tomava parte da "patuscada mortuária" depois do enterro, com pão mal cozido para encher a barriga, queijo e figos.
Um leitor, que não deu nome e endereço, condoído da minha ignorância, mandou um xerox pequeno, acho que de Hildegardes Vianna, com a descrição do café da manhã dos mortos na missa de sétimo dia, provavelmente na Bahia.
O pessoal acordava de madrugada. Era só quebrar e ralar coco, pilar arroz, abanar o fogão à lenha ou a carvão. Fogo pronto, cozinhava-se fruta-pão, aipim, inhame, batata-doce ou banana-da-terra. Outros tratavam dos bolos e do cuscuz enquanto a casa era lustrada, a louça lavada, cada canto polido e esfregado. Estendia-se a melhor toalha na mesa de jantar e a família de luto fechado partia para a igreja. E para a missa.
A tensão aumentava imediatamente. Seria a comida suficiente?
Arrumavam-se os pratos com o cuscuz de arroz, de milho, tapioca, mandioca, a fruta-pão cozida, a banana-da-terra, as batatas-doces. Não faltavam beijus, biscoitos e até um bom queijo, pão e manteiga.
Na volta, os convidados chegavam esfaimados, já se sentando sem convite, mesmo antes de aparecerem os bules com o leite, o chá, o café. Comia-se muito. Organizava-se depois a romaria ao túmulo. Quando o café da manhã se estendia, e a visita ao cemitério passava para a tarde, era preciso providenciar o almoço, como uma bacalhoada com leite de coco e dendê, feijão de leite, arroz-de-viúva. Às vezes um peixão em postas, acompanhado de bom vinho.
Abriam-se janelas e portas. Entrava o ar fresco, primas de longe propunham prolongar a visita por mais uns dias para distrair os parentes. A vida continuava.
Os ritos, sejam sagrados ou profanos, ajudam no processo do luto. Na cidade grande tentamos fugir da dor eliminando o mais que possível os rituais, quase escondendo o morto sem honrá-lo.
Fico de queixo caído ao ver a naturalidade com que os mexicanos lidam com a morte, com enterros, defuntos e Finados. Esses cuidados, carinhos e boa convivência com os mortos começou em 1563, quando o beato Sebástian de Aparicio, frade missionário, começou uma tradição de cerimônias funerárias junto aos índios. Eles as aceitaram imediatamente, pois vinham de encontro aos seus próprios costumes de honrar seus mortos.
O tema estimulava a imaginação popular, que se empenhava na preparação de pratos especiais. As mesas formavam o fulcro, o centro da festa.
Decoradas como altares com vela votivas, candelabro, incenso. A flor preferida era a calêndula, e o capricho maior ia para as figurinhas de açúcar representando crânios, ossos, esqueletos, demônios, símbolos da morte e procissões de enterro com todos seus figurantes, como nossas lapinhas e presépios.
As padarias entraram no espírito da coisa e vendem até hoje o pão dos mortos, um tipo de bolo de farinha de trigo, fermento, ovo, banha e açúcar, água de flor de laranjeira, casca de laranja e anis, polvilhado com açúcar e com dois ossos cruzados por cima.
Vale a pena comprar o livro "Fridas Fiestas", da editora Potter, de Guadalupe Rivera, filha de Diego Rivera, que viveu com Frida Kahlo e Diego em Coyocán, México. Não dá para acreditar na mesa de Finados que a artista aprontava. Nas vésperas saía de manhã para as compras de comida e, à tarde, para encomendar caveiras e esqueletos dançantes de papel machê que eram tidos como verdadeiras obras de arte.
No centro da mesa ia um prato grande com os frutos e nozes preferidos pela mãe dela, limões, tangerina, cana-de-açúcar, amendoins. Ao lado, a imitação de um túmulo formado por flores de papel com um retrato da mãe de Frida, com quatro velas nos cantos.
Durante o dia serviam-se as comidas tradicionais mexicanas e, de manhã, chocolate, pães dos mortos, biscoitos de ossinhos, tortillas e feijões.
E os feijões, "fave dei morti", importantíssimos em muitos Finados... ficam para o ano que vem, se Deus quiser.



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