São Paulo, sábado, 30 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVRO/LANÇAMENTO

"A GUERRA (1914-1918)"

Julio Mesquita leva o leitor aos infernos da Primeira Guerra

ROBERTO ROMANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Hoje precisamos lançar um apelo: que venha o homem capaz de produzir um belo medo em nossa existência" (Heidegger, 1929). Esta frase, publicada na sequência da Primeira Guerra, revela um imaginário terrorista. É por tal motivo que Norbert Elias dedicou "Os Alemães" ao vínculo do terror com o nacionalismo germânico. O terrorista vive do medo e o espalha. Heidegger saúda o pânico enquanto belo, numa estetização do mal que integra as pregações nazistas. A cantilena sobre a "superioridade" alemã, do plano racial à cultura, despertou a morte, enterrada nas lembranças da guerra, e ampliou seu reino em matanças inauditas.
Heidegger leu Empédocles. Ele percebeu o horror quando apelou para o medo gerado por um homem providencial. O filósofo esqueceu "apenas" as denúncias contra a guerra feitas pelo pré-socrático: "Não cessareis a carnificina odiosa? Não vedes em que loucuras descuidadas vos estais a consumir uns aos outros?".
E, hoje, G.W. Bush ainda delira com a "superioridade" americana e se julga no direito de jogar bombas e gente armada no planeta. Ele e os terroristas definem a "razão" de Estado com frases feitas.
É nesse contexto que surge, em nova edição, o livro de Julio Mesquita (1862-1927). A obra contém os boletins semanais sobre a Primeira Guerra escritos pelo jornalista e publicados, entre 1914 e 1918, em "O Estado de S.Paulo", jornal do qual foi publisher. Ao longo das 920 páginas, divididas em quatro volumes e recheadas por fotos, Mesquita expõe os fatos guerreiros com objetividade e prudência e escreve frases justas sobre a barbárie dos combatentes.
Nas linhas finais, diz: "Somos homens, e o célebre verso latino, uma vez lido, nunca mais nos saiu da memória: não queremos ser estranhos às coisas humanas, principalmente às que, com tanta evidência, põem em jogo os altos destinos da humanidade. Somos brasileiros. Vimos a nossa terra quase nas garras de uma casta de assalto e de rapina (...). O pangermanismo por terra, somos, sem ameaças, um povo independente. Resta que o saibamos ser no concurso internacional, incruento e civilizador que se vai abrir".
Cada frase do trecho citado está cheia de correto sentido lógico e histórico. Menos a última. O concurso internacional se mostrou tudo, menos civilizador ou incruento. Depois dos milhões de cadáveres da Primeira Guerra, milhões de cadáveres surgiram na Segunda. E logo ali, na esquina dos tempos, vislumbramos, no século 21, outros milhões.
Mesquita mostra, no livro, ser um jornalista erudito em filosofia e literatura. Ele não se descuidou das informações teóricas sobre a guerra e sobre a história, recorrendo aos dados sobre o comércio, as ciências e as técnicas.
Amigo dos franceses, apreciou com isenção os alemães, mesmo nos instantes em que eles desfilavam arrogância. Também soube julgar os ingleses, desde suas táticas de guerra até o comércio colonial. Dos russos, soube captar as mais escondidas dobras da alma. Ele não se enganou com os norte-americanos e captou a importância que teriam a partir dali.
Jornalista, Mesquita não superestima a imprensa. Ele define seus artigos como partes de um "despretensioso boletim, em que se não dão soluções, nem se ditam sentenças, mas somente se procuram explicações plausíveis". O "plausível" se atinge com dados, pesquisa, saber. E ao leitor fica a autonomia para julgar. O jornalista, diz Mesquita, afasta a "pura invencionice da legião dos noveleiros, de imaginação inesgotável" e dissolve os "tremendos disparates" lançados pelos governos.
A leitura de "A Guerra" traz lições para todos, e serve como desagradável descida aos infernos guerreiros. Quem não perdeu a consciência e se acautela diante das imagens da CNN percebe a relevância do presente resgate de um grande texto jornalístico. Enquanto no Brasil se acumulam os processos judiciários para calar a imprensa, recordemos a dignidade do jornalismo. Este livro cumpre de modo perfeito essa função.


Roberto Romano, 56, filósofo, é professor titular de ética e filosofia na Unicamp

A Guerra (1914-1918)


    
Autor: Julio Mesquita
Editora: O Estado de S.Paulo/Terceiro Nome
Quanto: R$ 200 (quatro vols., 920 págs.)



Texto Anterior: Entrelinhas: A volta do sociólogo FHC
Próximo Texto: Drauzio Varella: O odor dos genes
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.