São Paulo, sábado, 30 de novembro de 2002

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DRAUZIO VARELLA

O odor dos genes

Disparidades genéticas despertam ímpetos de acasalamento. Essa atração pela diversidade está claramente demonstrada na escala zoológica e vale para seres tão diversos como o ouriço-do-mar, os ratos e os seres humanos.
Indivíduos geneticamente muito diferentes levam vantagem ao combinar e recombinar informações genéticas porque as diferenças diminuem a chance de um gene defeituoso do pai formar um par com outro materno portador de defeito semelhante. Assim, no decorrer das gerações, a seleção natural privilegiou a diversidade e puniu com a extinção os portadores de genes consanguíneos, deletérios.
Nos organismos complexos, a luta pela vida é sobretudo dependente da integridade do sistema imunitário. Durante milhões de anos, a evolução selecionou sistemas imunológicos primorosos para exercer duas funções fundamentais: destruir o que é estranho ao organismo e preservar o que lhe é próprio.
Para o exercício dessa última função, cada indivíduo traz uma marca particular em cada uma de suas células, que serve de salvo-conduto para escapar de seu próprio exército de defesa. Diante dela, anticorpos e glóbulos brancos passam ao largo. Essas marcas, que indicam a procedência de cada célula do corpo, são conhecidas com o nome de antígenos de histocompatibilidade (MHC). Na clínica, são eles que testamos para saber quem pode doar órgãos que não serão rejeitados pelo receptor do transplante.
Experimentos realizados com ratos no passado procuraram caracterizar os fatores responsáveis pelo padrão de acasalamento que se estabelecia entre machos e fêmeas mantidos em gaiolas coletivas. Nunca foi possível descobrir nenhum fator hormonal ou perfil bioquímico que explicasse a preferência sexual.
Apenas nos anos 1980 é que três grupos de pesquisadores encontraram resposta para esse mistério: as ratas eram atraídas pelos machos e vice-versa de acordo com a maior divergência dos antígenos de histocompatibilidade presentes nas células do sistema imunológico. De alguma forma, os ratos eram capazes de detectar através dos sentidos as diferenças genéticas fundamentais para a sobrevivência da prole e escolher a parceria sexual com base nelas.
Embora os mecanismos dessa percepção sensorial não sejam conhecidos com precisão, trabalhos publicados nos últimos 20 anos sugeriram que o estímulo químico captado pelos sentidos, nesse caso, são os odores do corpo.
Em 1995, C. Wederkind e colaboradores "tiparam" a histocompatibilidade (MHC) de 49 moças e de 44 rapazes estudantes da Universidade de Berna, que não se conheciam uns aos outros. Os rapazes foram obrigados a dormir sozinhos em suas camas, usando uma mesma camiseta, na noite de domingo e de segunda-feira. Na manhã seguinte, guardavam a camiseta num saco plástico etiquetado e a entregavam aos pesquisadores.
Seis sacos plásticos contendo camisetas usadas foram apresentados a cada mulher. Sem que elas soubessem, três continham camisetas de rapazes portadores de genes mais próximos aos delas, e as outras três pertenciam a homens mais díspares geneticamente. As mulheres deviam dar notas de zero a dez para cada camiseta, de acordo com a análise de dois critérios: atração/repulsão sexual e sensação agradável/desagradável provocada por aquele odor.
O tratamento estatístico dos resultados mostrou que:
1) As mulheres deram notas mais altas para as camisetas dos homens que apresentavam maior disparidade genética em relação a elas, confirmando os resultados obtidos com ratos.
2) Estimuladas a comparar o odor da camiseta testada com a lembrança do cheiro de namorados atuais ou antigos, as mulheres identificaram-no nas camisetas de homens com MHCs díspares, com o dobro da frequência do que nas de MHCs similares aos delas.
Entre todos os primatas, seres humanos são os que possuem mais glândulas produtoras de odores corpóreos. Embora nosso olfato seja capaz de discernir talvez 10 mil ou mais cheiros diferentes, ele é dez a 20 vezes menos sensível do que o de um cachorro, e menos ainda do que o de um rato.
As terminações nervosas que captam odores estão ancoradas na mucosa nasal. Quando sentimos o cheiro de uma laranja, por exemplo, diversas terminações foram estimuladas especificamente pelas diferentes moléculas liberadas pela fruta e conduzidas para o cérebro, que reuniu e analisou todos os "bits" de informação, comparou-os com experiências prévias armazenadas na memória e identificou o cheiro com tal precisão que saberemos se ele veio da fruta verde ou madura, de uma bala ou de um xampu com essência de laranja.
Esses neurônios receptores de sinais olfativos presentes na mucosa nasal enviam terminações que convergem para uma estrutura situada mais internamente, chamada bulbo olfatório. Os estímulos que chegam ao bulbo são organizados e conduzidos a diversos centros cerebrais, entre os quais se encontra o sistema límbico, uma das áreas mais importantes no processamento das emoções, da sexualidade e do desejo. Essa conexão entre o bulbo olfatório e o sistema límbico constitui uma via muito mais rápida de transmissão do estímulo nervoso do que a percorrida pelas informações visuais ou auditivas, por exemplo.
A partir do instante em que o bebê, guiado pelo cheiro de leite, encontra pela primeira vez o mamilo materno, as conexões diretas entre os receptores do olfato e os centros que integram impulsos emocionais exercem influência decisiva nos relacionamentos humanos. Como diz a pesquisadora Susan Schiffman, da Universidade Duke: "Um casal pode sobreviver a toda sorte de diferenças, mas, quando um deixa de gostar do cheiro do outro, o relacionamento está arruinado".


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