São Paulo, sábado, 31 de janeiro de 2009

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Crítica/"Duas Águas"

Obra tem duas novelas com diferentes tons

MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Três anos depois de "Quatro Negros", o escritor, crítico e professor gaúcho Luís Augusto Fischer apresenta mais duas incursões na modalidade literária pela qual, entre nós, tem se destacado: a novela. Expressão narrativa de tamanho intermediário entre o conto e o romance, foi praticada por autores de peso, como Poe, Henry James, Conrad e Kafka, embora, mais modernamente, com o baralhamento dos gêneros, tenha sido relegada ao posto de excentricidade difícil de definir. Em "Duas Águas", Fischer toma emprestado o título de uma antiga coletânea do poeta João Cabral de Melo Neto e, de certo modo descontextualizando-o, emprega-o para descrever a diferença de tom e estilo de suas duas novelas: uma "história leve, que acabasse bem, com gente feliz em atuação" e outra, mais difícil, "escura, turbulenta, lenta". Fruto de uma experiência em blog durante a famosa Feira do Livro de Porto Alegre, a primeira ("Na Feira, às Quatro da Tarde") resulta anódina, pouco eficiente. Nesse sentido, a segunda ("Mundo Colono"), ao retomar não só a linha de exploração tentativa do passado de "Quatro Negros" mas também seu teor mais denso e rico, por si só justifica a atenção ao autor e a importância do livro.

Imposibilidade
Em "Mundo Colono", o narrador procura recuperar para o filho, por meio de uma série de desenhos, o universo de sua infância e adolescência. O interesse da narrativa começa com a impossibilidade de esses esboços reconstituírem a diversidade da experiência sensível. Não apenas a cor é impossível de ser captada, pois se trata de retratos feitos com grafite, como também os cheiros e os ruídos. Além disso, para a elaboração das imagens, um determinado ângulo ou ponto de vista deve ser escolhido e, quase sempre o que fica de fora, o espaço "off" acionado pela memória (ou pela imaginação), revela a riqueza do que está além dos limites do desenho. Quando ele compõe o retrato de uma criada dos avós, por exemplo, a perspectiva adotada faz ficar "para a lembrança" muitos dos traços essenciais da casa fincada num bairro de chácaras: o galinheiro, o potreiro com as vacas de leites, a horta e o jardim de flores.
O narrador quer conservar para o filho esse mundo colono, semirrural e semiurbano, composto de alemães e descendentes de alemães, no Sul do Brasil. Um mundo onde muitos não falavam português e onde o alemão parecia ser, de fato, a língua franca. Num dos passeios que o narrador costumava fazer pela roça, no passado, encontrou um velho que costumava colecionar artefatos indígenas, de tribos desaparecidas. Um dia, representantes do Estado tomaram-lhe o tesouro e tudo o que restou foi seu caderno, onde bosquejou suas descobertas.
Assim como seus esboços implicam um registro duplamente fantasmagórico (pois não possui nem os objetos da civilização extinta), os desenhos do narrador configuram-se um esforço precário mas extremado e, assim, também comovente, de conservar um estado de coisas que, em sua materialidade, já se perdeu.



DUAS ÁGUAS
Autor: Luís Augusto Fischer
Editora: L&PM
Quanto: R$ 22 (152 págs.)
Avaliação: bom
MARCELO PEN é professor de teoria literária na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.




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