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Crítica/"Duas Águas"
Obra tem duas novelas com diferentes tons
MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Três anos depois de
"Quatro Negros", o escritor, crítico e professor gaúcho Luís Augusto Fischer apresenta mais duas incursões na modalidade literária
pela qual, entre nós, tem se destacado: a novela.
Expressão narrativa de tamanho intermediário entre o
conto e o romance, foi praticada por autores de peso, como
Poe, Henry James, Conrad e
Kafka, embora, mais modernamente, com o baralhamento
dos gêneros, tenha sido relegada ao posto de excentricidade
difícil de definir.
Em "Duas Águas", Fischer
toma emprestado o título de
uma antiga coletânea do poeta
João Cabral de Melo Neto e, de
certo modo descontextualizando-o, emprega-o para descrever a diferença de tom e estilo
de suas duas novelas: uma "história leve, que acabasse bem,
com gente feliz em atuação" e
outra, mais difícil, "escura, turbulenta, lenta".
Fruto de uma experiência em
blog durante a famosa Feira do
Livro de Porto Alegre, a primeira ("Na Feira, às Quatro da Tarde") resulta anódina, pouco eficiente. Nesse sentido, a segunda ("Mundo Colono"), ao retomar não só a linha de exploração tentativa do passado de
"Quatro Negros" mas também
seu teor mais denso e rico, por
si só justifica a atenção ao autor
e a importância do livro.
Imposibilidade
Em "Mundo Colono", o narrador procura recuperar para o
filho, por meio de uma série de
desenhos, o universo de sua infância e adolescência. O interesse da narrativa começa com
a impossibilidade de esses esboços reconstituírem a diversidade da experiência sensível.
Não apenas a cor é impossível de ser captada, pois se trata
de retratos feitos com grafite,
como também os cheiros e os
ruídos. Além disso, para a elaboração das imagens, um determinado ângulo ou ponto de
vista deve ser escolhido e, quase sempre o que fica de fora, o
espaço "off" acionado pela memória (ou pela imaginação), revela a riqueza do que está além
dos limites do desenho.
Quando ele compõe o retrato
de uma criada dos avós, por
exemplo, a perspectiva adotada
faz ficar "para a lembrança"
muitos dos traços essenciais da
casa fincada num bairro de chácaras: o galinheiro, o potreiro
com as vacas de leites, a horta e
o jardim de flores.
O narrador quer conservar
para o filho esse mundo colono,
semirrural e semiurbano, composto de alemães e descendentes de alemães, no Sul do Brasil.
Um mundo onde muitos não
falavam português e onde o alemão parecia ser, de fato, a língua franca.
Num dos passeios que o narrador costumava fazer pela roça, no passado, encontrou um
velho que costumava colecionar artefatos indígenas, de tribos desaparecidas. Um dia, representantes do Estado tomaram-lhe o tesouro e tudo o que
restou foi seu caderno, onde
bosquejou suas descobertas.
Assim como seus esboços implicam um registro duplamente fantasmagórico (pois não
possui nem os objetos da civilização extinta), os desenhos do
narrador configuram-se um esforço precário mas extremado
e, assim, também comovente,
de conservar um estado de coisas que, em sua materialidade,
já se perdeu.
DUAS ÁGUAS
Autor: Luís Augusto Fischer
Editora: L&PM
Quanto: R$ 22 (152 págs.)
Avaliação: bom
MARCELO PEN é professor de teoria literária na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
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