São Paulo, sexta-feira, 31 de março de 2000


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Livro expõe raízes do Brasil

Reprodução
SÃO PAULO - Este desenho sem título de 1821 mostra a parte sul da cidade; são vistos, do lado direito, o frontão e a torre da Sé; no centro, a ladeira do Carmo, que termina em uma ponte sobre o rio Tamanduateí; à esquerda, vê-se a igreja do Carmo



Obra reúne 350 mapas e vistas do país no período colonial; cem imagens originais estão em mostra que abre hoje no Masp, cujo destaque é o original do Tratado de Tordesilha


BRASIL 500 ANOS
CELSO FIORAVANTE
da Reportagem Local

O resultado de 40 anos de pesquisa do arquiteto e professor da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP) Nestor Goulart Reis sobre o desenvolvimento urbano de vilas e cidades brasileiras chega hoje a público.
Trata-se do livro "Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial", uma co-edição Edusp e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo que reúne em 414 páginas cerca de 350 imagens de mapas e vistas de núcleos urbanos da quase totalidade de Estados do país, selecionadas entre cerca de mil imagens, localizadas em bibliotecas e arquivos públicos e particulares brasileiros e de cidades como Lisboa, Porto, Paris, Nova York e Haia. Grande parte delas jamais foi publicada.
Em entrevista à Folha, Nestor Goulart Reis falou sobre a necessidade de uma reavaliação histórica do desenvolvimento urbano do país no período colonial, detalhou os objetivos militares de muitos desses mapas e criticou a falta de projetos urbanísticos para o país. Leia abaixo trechos da entrevista.

Folha - Por que as pesquisas para o livro "Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial" levaram 40 anos?
Nestor Goulart Reis -
Eu comecei as minhas pesquisas em 1960 e fiz minha primeira tese em 1964, de livre-docência, mostrando que havia planejamento urbano no Brasil. Mas o pesquisador nunca pára. Eu fui encontrando mais coisas e percebi que era necessário dar continuidade ao trabalho.
Há dez anos, com o apoio da Fapesp, compramos novos aparelhos de reprodução fotográfica e resolvemos refotografar a pesquisa, então ampliada, em alta resolução.
Há dois anos e meio, quando o Iphan soube que os portugueses estavam querendo publicar esse trabalho por ocasião dos 500 anos, veio aqui, quase como um protesto, e ofereceu apoio para que a pesquisa fosse completada e o trabalho fosse publicado primeiro por aqui.

Folha - Esse material traz novidades sobre a formação e a história do Brasil?
Goulart Reis -
Sim. Nesse processo, nós nos demos conta de que era preciso levar esse material ao país inteiro, pois cada região tem seus pesquisadores e historiadores. Seria uma medida de interesse público levar esse material ao país inteiro, pois a documentação reunida traz uma série de novidades sobre a história do Brasil, como a existência de planos urbanísticos no período colonial. Alguns desenhos nos ajudam a compreender os conflitos com os franceses, holandeses e ingleses. Eles permitem fazer uma revisão da história do Brasil com mais detalhes.

Folha - Quais singularidades as diferenças geográficas nos diversos Estados e cidades causaram na urbanização?
Goulart Reis -
Notamos que, nos séculos 16 e 17, quando o Brasil era praticamente uma retaguarda rural da Europa, com mais vida nos engenhos e fazendas, os conflitos se davam nas vilas e cidades do litoral. Nessa época, o trabalho dos engenheiros militares era fortalecer as defesas dessas cidades e desenhá-las para organizar fortificações e planos de combate. Há um investimento muito grande de quadros técnicos no litoral.
No século 18, com o descobrimento das minas, a população migrou para o interior e criou um problema novo, pois grande parte desses territórios estava além da linha estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas.
Minas Gerais era uma área mais pacífica do ponto de vista militar para Portugal e Brasil. Já Mato Grosso, Goiás e Amazônia estavam todas além da linha do tratado. Havia também muita discussão em torno dos Estados do sul, de São Paulo até a colônia de Sacramento (atual Uruguai). Colônias recentes, como Ceará e Piauí, também eram instáveis. Nessas regiões de conflito é que foram feitos os grandes investimentos em projetos urbanísticos no século 18. A Amazônia, por exemplo, recebeu mais de cem estudos para pequenas povoações e vilas. Foi um trabalho gigantesco em pouco mais de 50 anos.

Folha - Nessas regiões internas, sendo elas também praças beligerantes, os projetos urbanísticos também não eram destinados às fortificações?
Goulart Reis -
Algumas vilas que estavam nos limites das áreas conquistadas eram praças fortes. Mais adentro, o que existia era uma política de demonstrar a presença da cultura portuguesa. A preocupação era dar um caráter português à aparência da cidade, inclusive para que a população se sentisse portuguesa.

Folha - A urbanização das vilas no Brasil colonial definia claramente as diferenças sociais entre sua população?
Goulart Reis -
As áreas de comércio em geral ficavam junto ao porto. Os senhores de engenho ficavam junto às praças, onde estavam os palácios dos governadores, e da casa de câmara, símbolos do poder da época. No século 18, com o desenvolvimento do comércio, desenvolveram-se projetos urbanísticos apenas de áreas comerciais. Os escravos urbanos moravam nas próprias casas, que eram seus locais de trabalho.
Até o século 18, os indígenas não tinham a posse da terra. Estavam à margem da lei. No século 18, com a política de integração indígena e consolidação cultural de Pombal, as ordens religiosas foram afastadas das aldeias indígenas, e os índios foram integrados às vilas e receberam doações de terrenos para a construção de suas casas, nitidamente mais simples que as dos portugueses. Mas eles nunca foram ignorados.
Fenômenos como favelas e mocambos apareceram só nos séculos 19 e 20. Essa absoluta indiferença em relação às populações mais pobres nas cidades é mais do nosso tempo.
Mas, na segunda metade do século 18, quando começaram as grandes políticas urbanas iluministas, os projetos políticos previam o papel de cada segmento social dentro da sociedade. Pensa-se em todos os segmentos sociais, inclusive como forma de controle. Eles receavam que o aumento da população de escravos, por exemplo, criasse um clima de revoltas.

Folha - Isso quer dizer que, guardadas as devidas proporções, vivia-se melhor no Brasil colonial?
Goulart Reis -
Nesse sentido, sim. Nas condições técnicas da época, os moradores mais pobres estavam incluídos nos planos e melhores do que estamos agora. Todos os planos urbanísticos do BNH não atenderam 4% da demanda das camadas pobres das cidades brasileiras. A situação real da população pobre do Brasil não é enfrentada hoje como no século 18. Políticas urbanas não são apenas traçados de sistemas viários.

Folha - O descaso com o planejamento urbano a partir do Império é o responsável pela existência de cidades caóticas, como São Paulo?
Goulart Reis -
Caótica e desorganizada, inclusive politicamente, como estamos vendo agora. Essa é uma tradição brasileira: valorizar o rural e não valorizar o urbano. Pensam que urbanismo é abrir estradas. O resto é deixado ao acaso.
Hoje nós estamos desaparelhados para pensar o Brasil, mas, no Império, a política da metrópole se fazia por meio do urbanismo. O controle do urbanismo configurava toda a política de Portugal.

Folha - Por que uma boa parte dos desenhos foi realizada por holandeses?
Goulart Reis -
Os objetivos eram militares. A Coroa portuguesa foi unificada com a espanhola em 1580. Os holandeses estavam brigando com a Espanha e, portanto, com Portugal e com o Brasil. Durante anos, esses desenhos foram feitos para serem usados nos ataques holandeses.
Dierick Ruiters, que foi aprisionado aqui, desenhou Salvador, Rio e Recife e chegou a escrever um trabalho sobre como as cidades deveriam ser atacadas. Quando os holandeses atacaram a Bahia, em 1624, ele estava no grupo que desembarcou e fez como havia planejado: atacou pela retaguarda. Em 1630, quando atacaram Recife e Olinda, desceu no ponto em que havia descrito. Ele funcionou como um espião.
Os objetivos de holandeses, franceses e ingleses também eram militares. Não era por bondade ou colaboração que eles desenhavam as cidades. A admiração paisagística só aparece no fim do século 18 e começo do século 19, depois da chegada de d. João 6º. Boa parte dos desenhos feitos pelos não portugueses era feita pelo mar. Eles estavam nos navios.



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