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A CIDADE NA TELA
Cenário é plataforma utópica
MÁRIO MAGALHÃES
da Sucursal do Rio
O cineasta Bruno Barreto prestaria relevante serviço à cidade do
Rio se desse dois telefonemas e
convidasse para uma sessão de
"Bossa Nova" o prefeito Luiz Paulo Conde (PFL) e o governador
Anthony Garotinho (PDT).
Em cenários-síntese com o fulgor da Manhattan de Woody
Allen, da Paris de Truffaut e da
Roma de Fellini, Conde e Garotinho veriam um pouco do que o
Rio poderia ser caso não padecesse de males que o castigam.
É um Rio onírico, divino, maravilhoso o que emerge das imagens
de "Bossa Nova". A cidade real às
vezes é muito, muito pior.
Num maiô pudico que oculta o
essencial de seus contornos, a senhorita Simpson interpretada por
Amy Irving mergulha das pedras
do Arpoador para nadar em Ipanema.
Fosse verdade, se arriscaria a
pegar uma boa micose, já que o
índice de coliformes fecais naquelas águas atingiram um nível que,
em fins-de-semana do verão, levou a Prefeitura do Rio a recomendar distância dali.
A propósito: a dublê que salta
das pedras foi contratada devido à
correnteza ou à sujeira?
A praia do Leblon, filmada da
avenida Niemeyer, é mais bela do
que certos retratos em preto-e-branco expostos em mostras fotográficas sobre o Rio antigo.
Em março, porém, exibiu uma
mancha amarela produzida por
esgoto jorrado no mar. E há muito o banho no final do Leblon é
aventura de gente pouco afeita às
normas elementares de higiene.
Perto do Leblon, a Tânia vivida
por Débora Bloch se dedica ao tai-chi-chuan tendo por trás a lagoa
Rodrigo de Freitas, num trecho
entre o Cantagalo e a Catacumba.
Tudo ao ar livre -que dúvida?
No começo do mês, ela teria de
cobrir o rosto com uma máscara
para se proteger do fedor instaurado pela morte de 136 toneladas
de peixes e crustáceos asfixiados
pelo esgoto de favelas e apartamentos de "gente de bem".
Nos primeiros dias da tragédia
ambiental, Conde e Garotinho
gastaram parte do tempo a se digladiar sobre o caráter "municipal" ou "estadual" do esgoto.
O apartamento de Tânia tem
vista para a lagoa. A agência de
viagens em que ela trabalha foi
montada no clube Sírio e Libanês,
também às margens da Rodrigo
de Freitas. E o hospital onde a senhorita Simpson se interna é o da
lagoa.
Seguindo o "tour" carioca, o advogado Pedro Paulo, conquistador da senhorita Simpson, bate
ponto num escritório na praia de
Botafogo.
Da janela, vê-se o Pão de Açúcar. A separar Pedro Paulo e o
morro, a enseada de Botafogo,
um amontoado de água poluída
na zona sul, permanentemente
vetado pelos órgãos responsáveis
pelo meio ambiente.
Se em janeiro um barquinho
saísse de Botafogo e navegasse
poucos quilômetros, se depararia
com as 1.292 toneladas de óleo vazadas de um duto na baía de Guanabara, a mesma atravessada pela
barca Rio-Niterói na qual o personagem de Pedro Cardoso (Roberto) aborda sem sucesso o de Giovanna Antonelli (Sharon).
O Rio das lentes de Bruno Barreto e das canções bossa-novistas
impressiona e comove. É uma
plataforma utópica do que a cidade poderia ser e, quem sabe, um
dia já tenha sido.
E que não se cobre o registro de
mazelas do abismo social carioca.
Se Woody Allen selecionou só o
que era sedutor na sua Nova York
para "Manhattan", por que Barreto não poderia fazer igual?
A nostalgia costuma ser um
olhar deprimido e submisso para
dias distantes e melhores. Com
miragens do presente, "Bossa Nova" evoca um passado em que o
futuro pode se inspirar. Dá uma
saudade que, se não faz bem, não
causa mal algum.
Nem quando mostra um prédio
do bairro do Flamengo e, numa licença poética, diz que fica na rua
Duvivier, em Copacabana.
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