São Paulo, sexta-feira, 31 de março de 2000


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A CIDADE NA TELA
Cenário é plataforma utópica

MÁRIO MAGALHÃES
da Sucursal do Rio

O cineasta Bruno Barreto prestaria relevante serviço à cidade do Rio se desse dois telefonemas e convidasse para uma sessão de "Bossa Nova" o prefeito Luiz Paulo Conde (PFL) e o governador Anthony Garotinho (PDT).
Em cenários-síntese com o fulgor da Manhattan de Woody Allen, da Paris de Truffaut e da Roma de Fellini, Conde e Garotinho veriam um pouco do que o Rio poderia ser caso não padecesse de males que o castigam.
É um Rio onírico, divino, maravilhoso o que emerge das imagens de "Bossa Nova". A cidade real às vezes é muito, muito pior.
Num maiô pudico que oculta o essencial de seus contornos, a senhorita Simpson interpretada por Amy Irving mergulha das pedras do Arpoador para nadar em Ipanema.
Fosse verdade, se arriscaria a pegar uma boa micose, já que o índice de coliformes fecais naquelas águas atingiram um nível que, em fins-de-semana do verão, levou a Prefeitura do Rio a recomendar distância dali.
A propósito: a dublê que salta das pedras foi contratada devido à correnteza ou à sujeira?
A praia do Leblon, filmada da avenida Niemeyer, é mais bela do que certos retratos em preto-e-branco expostos em mostras fotográficas sobre o Rio antigo.
Em março, porém, exibiu uma mancha amarela produzida por esgoto jorrado no mar. E há muito o banho no final do Leblon é aventura de gente pouco afeita às normas elementares de higiene.
Perto do Leblon, a Tânia vivida por Débora Bloch se dedica ao tai-chi-chuan tendo por trás a lagoa Rodrigo de Freitas, num trecho entre o Cantagalo e a Catacumba. Tudo ao ar livre -que dúvida?
No começo do mês, ela teria de cobrir o rosto com uma máscara para se proteger do fedor instaurado pela morte de 136 toneladas de peixes e crustáceos asfixiados pelo esgoto de favelas e apartamentos de "gente de bem".
Nos primeiros dias da tragédia ambiental, Conde e Garotinho gastaram parte do tempo a se digladiar sobre o caráter "municipal" ou "estadual" do esgoto.
O apartamento de Tânia tem vista para a lagoa. A agência de viagens em que ela trabalha foi montada no clube Sírio e Libanês, também às margens da Rodrigo de Freitas. E o hospital onde a senhorita Simpson se interna é o da lagoa.
Seguindo o "tour" carioca, o advogado Pedro Paulo, conquistador da senhorita Simpson, bate ponto num escritório na praia de Botafogo.
Da janela, vê-se o Pão de Açúcar. A separar Pedro Paulo e o morro, a enseada de Botafogo, um amontoado de água poluída na zona sul, permanentemente vetado pelos órgãos responsáveis pelo meio ambiente.
Se em janeiro um barquinho saísse de Botafogo e navegasse poucos quilômetros, se depararia com as 1.292 toneladas de óleo vazadas de um duto na baía de Guanabara, a mesma atravessada pela barca Rio-Niterói na qual o personagem de Pedro Cardoso (Roberto) aborda sem sucesso o de Giovanna Antonelli (Sharon).
O Rio das lentes de Bruno Barreto e das canções bossa-novistas impressiona e comove. É uma plataforma utópica do que a cidade poderia ser e, quem sabe, um dia já tenha sido.
E que não se cobre o registro de mazelas do abismo social carioca. Se Woody Allen selecionou só o que era sedutor na sua Nova York para "Manhattan", por que Barreto não poderia fazer igual?
A nostalgia costuma ser um olhar deprimido e submisso para dias distantes e melhores. Com miragens do presente, "Bossa Nova" evoca um passado em que o futuro pode se inspirar. Dá uma saudade que, se não faz bem, não causa mal algum.
Nem quando mostra um prédio do bairro do Flamengo e, numa licença poética, diz que fica na rua Duvivier, em Copacabana.


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