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São Paulo, segunda-feira, 31 de março de 2003

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ANÁLISE

Conflito no Iraque desmistifica a televisão

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

A guerra do Iraque vem sendo considerada como o conflito mais televisivo da história. Talvez essa seja das poucas certezas possíveis sobre o andar do enfrentamento.
Longe do eixo bipolar do "bem" contra o "mal" que as lideranças de ambos os lados procuram impor, a relativa diversidade de fontes, sempre parciais, deixa entrever a complexidade explosiva da cena contemporânea.
Fragmentos de guerra saturam a telinha. Manifestações civis pacifistas em diversas cidades ao redor do globo foram incorporadas ao noticiário de todo dia.
Na cobertura ocidental, vozes em "off" narram avanços de tanques e tropas no deserto, tempestades de areia, pedaços de cidade destruída não se sabe ao certo por "erro" de quem. Repórteres "in loco" narram a experiência terrível da guerra de fato, uma visita ao inferno.
Na cobertura da TV oriental independente Al Jazeera, aparece algum detalhe da violência da guerra, corpos destroçados. O que resta da TV iraquiana conclama à resistência. Quase duas semanas após o início do ataque anglo-americano, o mundo assiste siderado, ao vivo e em tempo real, a um fluxo quase contínuo de informações desencontradas.
Ficamos nos perguntando como é possível que Bagdá continue lá aparentemente intacta, na mira daquela câmera parada 24h por dia, depois de ser atingida por tantos bombardeios. A cobertura televisiva foi cuidadosamente preparada. Mas, assim como a campanha militar, sofre os reveses inesperados do confronto real.
A divulgação de imagens dos horrores da guerra não interessa nem aos iraquianos, empenhados em demonstrar que resistem, nem aos americanos e ingleses, ciosos de seu compromisso com uma guerra cirúrgica. Horrores possuem algum poder de choque sobre a temida, disputada e instável opinião pública.
A TV, em geral, legitima seu discurso em torno da aparência de realidade de suas imagens. Ela seria capaz de oferecer "a vida como ela é", para usar um bordão do extinto "Aqui, Agora". A cobertura do atual conflito questiona essa pretensão de verdade. Jornalistas advertem o público para que desconfie do que vê. Repórteres no "Jornal Nacional" falaram na abundância de "informações contraditórias". No "TJ Brasil", Boris Casoy encorajou o público a questionar as informações recebidas, muitas vezes produzidas por jornalistas comprometidos com o Exército de seus países.
Sem querer, o conflito mais televisivo da história desmistifica a TV ao estimular o reconhecimento coletivo de que imagens são construídas.


Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP


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