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São Paulo, segunda-feira, 31 de março de 2003

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NELSON ASCHER

Quem não sabe critica

Quem sabe faz, quem não sabe critica. Essa máxima, como tantas, opera num nível de generalidade que, relegando tudo o que a contradiga à categoria da exceção, parece, para todos os efeitos, irrefutável. E os críticos em geral, mais frequentemente pelo seu tom do que por tais ou quais acertos e erros, tampouco ajudam a negá-la. Quando se vê um filme cuja realização tenha reunido os esforços de dezenas de profissionais, um romance no qual o autor tenha investido anos e anos, a estréia de uma peça ensaiada durante meses ou o recital de um pianista que tenha passado a vida debruçado sobre cada nota de algumas sonatas sendo demolidos em três frases desdenhosas e nem necessariamente bem escritas, justificar a existência mesma da crítica se converte em uma tarefa ingrata.
Embora reconheça quão melhor é assistir a "Ben Hur" projetado numa tela imensa, confesso que vivi a chegada em casa do videocassete no começo dos anos 80 como uma espécie de libertação comparável somente à carteira de motorista. Além de não ficar limitado à programação dos cinemas e da TV, nem ter de suportar jogadores de basquete na frente e comentaristas eloquentes ao redor, pude desde então tirar ou não tirar, após o "the end", minhas próprias conclusões sem ter de aguentar gente que não sairia de perto antes de discorrer sobre todos os defeitos do filme.
Ademais, as virtudes do aparelho acima e de seu sucessor, o DVD, não se resumem à função emancipatória. De quando em quando, a inovação tecnológica chega a ser capaz de redimir temporariamente um crítico típico. Foi esse o caso de meu primo János, de Budapeste. Em 1984, cinco anos antes da derrocada do comunismo em seu país, quando o hospedei por um mês, já quase não havia censura na Hungria, mas, devido à carência crônica de moeda forte, eram poucas as produções recentes em suas salas. Por isso aluguei, entre os que ele desconhecia, os vídeos indispensáveis. Começamos por "Blade Runner" (obviamente). Seu sorriso de escárnio resistiu meia hora. O que veio em seguida foi o queixo caído. Como ele então se apropriasse do controle remoto e retornasse meia dúzia de vezes a quase todas as cenas, passaram-se oito ou nove horas até chegarmos àquela na qual, com a face banhada de chuva e lágrimas, o andróide Roy diz ao caçador Deckard que tudo o que havia visto desapareceria "como lágrimas na chuva", pois era "hora de morrer" ("time to die").
Meu primo, voltando logo ao normal, ficou tão constrangido por ter sido pego gostando de um filme quanto um intelectual francês flagrado ao comer um BigMac. Ainda assim, o episódio evidenciou bem as fobias dos críticos que, como tantos sargentos cinematográficos, são obrigados pela profissão a ocultar, debaixo da dureza e da crueldade, o segredo de um coração mole. Pois, se existe entre as galinhas uma "hierarquia das bicadas" ("pecking order") de acordo com a qual a primeira bica todas sem ser bicada por nenhuma, a segunda é bicada apenas pela primeira mas bica as outras e assim por diante, o mesmo ocorre entre os críticos. Para eles, a vergonha maior reside em ser insuficientemente rigoroso, algo que se patenteia, em termos comparativos, quando um rival dá a um filme, livro ou quadro uma nota mais baixa. Por alguma razão misteriosa, tão logo alguém emita um juízo favorável (ou não desfavorável o bastante), ele se torna co-responsável pela obra comentada, de modo que um ataque subsequente a esta também o desautoriza, rebaixando-o na hierarquia galinácea de seus desiguais.
E, no entanto, é só descobrindo obras duráveis que um crítico assegura sua reputação. Por muito que sua atuação se assemelhe à de um cirurgião trabalhando com um serrote no meio dos feridos da Guerra Civil Americana em "O Vento Levou", seu sucesso não se conta pelo número de pernas e braços amputados. Numa época como a atual e em particular num país como o nosso, onde todos desconfiam de todos, nada é o que parece e as teorias conspiratórias proliferam, entende-se que, para muitos, a prática desse ofício consista sobretudo no desmascaramento de fraudes, o que, aliás, não é desimportante. Quem não se dedique a outra coisa, porém, será esquecido com as fraudes desmascaradas ou, pior, há de ser lembrado por não ter reconhecido um valor autêntico. Se há algo divertido na história literária, é ler os primeiros ataques virulentos a Machado, Drummond, Guimarães Rosa etc. Enquanto vigorar a fama deles, o ridículo acompanhará aqueles que os vilipendiaram. Por outro lado, os primeiros a correrem o risco de reconhecê-los continuam associados à sua grandeza.
Num fim de tarde de 1911, Ford Maddox Ford, escritor inglês que editava uma publicação chamada "English Review", aproveitou para abrir sua correspondência. Se bem que mal tivesse tido tempo de ler os primeiros parágrafos do conto que um mestre-escola do interior lhe enviara, ele resolveu imediatamente publicar o manuscrito e, antes de deixar às pressas o escritório para se dirigir a uma recepção qualquer, anunciou à secretária que acabara de descobrir um grande escritor. Quando lhe perguntaram depois como é que conseguira, sem sequer chegar à metade do texto, identificar com tamanha segurança sua qualidade, ele apresentou uma análise linha por linha, palavra por palavra do trecho que lera, mostrando quão perfeita e discretamente o contista dominava tanto o tema quanto os recursos expressivos. O ainda desconhecido autor do conto intitulado "Odor de Crisântemos", que sairia em breve na revista de Ford, era D. H. Lawrence.


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