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NELSON ASCHER
Quem não sabe critica
Quem sabe faz, quem não
sabe critica. Essa máxima,
como tantas, opera num nível de
generalidade que, relegando tudo
o que a contradiga à categoria da
exceção, parece, para todos os
efeitos, irrefutável. E os críticos
em geral, mais frequentemente
pelo seu tom do que por tais ou
quais acertos e erros, tampouco
ajudam a negá-la. Quando se vê
um filme cuja realização tenha
reunido os esforços de dezenas de
profissionais, um romance no
qual o autor tenha investido anos
e anos, a estréia de uma peça ensaiada durante meses ou o recital
de um pianista que tenha passado a vida debruçado sobre cada
nota de algumas sonatas sendo
demolidos em três frases desdenhosas e nem necessariamente
bem escritas, justificar a existência mesma da crítica se converte
em uma tarefa ingrata.
Embora reconheça quão melhor é assistir a "Ben Hur" projetado numa tela imensa, confesso
que vivi a chegada em casa do videocassete no começo dos anos 80
como uma espécie de libertação
comparável somente à carteira de
motorista. Além de não ficar limitado à programação dos cinemas
e da TV, nem ter de suportar jogadores de basquete na frente e
comentaristas eloquentes ao redor, pude desde então tirar ou
não tirar, após o "the end", minhas próprias conclusões sem ter
de aguentar gente que não sairia
de perto antes de discorrer sobre
todos os defeitos do filme.
Ademais, as virtudes do aparelho acima e de seu sucessor, o
DVD, não se resumem à função
emancipatória. De quando em
quando, a inovação tecnológica
chega a ser capaz de redimir temporariamente um crítico típico.
Foi esse o caso de meu primo János, de Budapeste. Em 1984, cinco
anos antes da derrocada do comunismo em seu país, quando o
hospedei por um mês, já quase
não havia censura na Hungria,
mas, devido à carência crônica de
moeda forte, eram poucas as produções recentes em suas salas. Por
isso aluguei, entre os que ele desconhecia, os vídeos indispensáveis. Começamos por "Blade Runner" (obviamente). Seu sorriso de
escárnio resistiu meia hora. O que
veio em seguida foi o queixo caído. Como ele então se apropriasse
do controle remoto e retornasse
meia dúzia de vezes a quase todas
as cenas, passaram-se oito ou nove horas até chegarmos àquela na
qual, com a face banhada de chuva e lágrimas, o andróide Roy diz
ao caçador Deckard que tudo o
que havia visto desapareceria
"como lágrimas na chuva", pois
era "hora de morrer" ("time to
die").
Meu primo, voltando logo ao
normal, ficou tão constrangido
por ter sido pego gostando de um
filme quanto um intelectual francês flagrado ao comer um BigMac. Ainda assim, o episódio evidenciou bem as fobias dos críticos
que, como tantos sargentos cinematográficos, são obrigados pela
profissão a ocultar, debaixo da
dureza e da crueldade, o segredo
de um coração mole. Pois, se existe entre as galinhas uma "hierarquia das bicadas" ("pecking order") de acordo com a qual a primeira bica todas sem ser bicada
por nenhuma, a segunda é bicada
apenas pela primeira mas bica as
outras e assim por diante, o mesmo ocorre entre os críticos. Para
eles, a vergonha maior reside em
ser insuficientemente rigoroso, algo que se patenteia, em termos
comparativos, quando um rival
dá a um filme, livro ou quadro
uma nota mais baixa. Por alguma razão misteriosa, tão logo alguém emita um juízo favorável
(ou não desfavorável o bastante),
ele se torna co-responsável pela
obra comentada, de modo que
um ataque subsequente a esta
também o desautoriza, rebaixando-o na hierarquia galinácea de
seus desiguais.
E, no entanto, é só descobrindo
obras duráveis que um crítico assegura sua reputação. Por muito
que sua atuação se assemelhe à
de um cirurgião trabalhando com
um serrote no meio dos feridos da
Guerra Civil Americana em "O
Vento Levou", seu sucesso não se
conta pelo número de pernas e
braços amputados. Numa época
como a atual e em particular
num país como o nosso, onde todos desconfiam de todos, nada é o
que parece e as teorias conspiratórias proliferam, entende-se que,
para muitos, a prática desse ofício
consista sobretudo no desmascaramento de fraudes, o que, aliás,
não é desimportante. Quem não
se dedique a outra coisa, porém,
será esquecido com as fraudes
desmascaradas ou, pior, há de ser
lembrado por não ter reconhecido
um valor autêntico. Se há algo divertido na história literária, é ler
os primeiros ataques virulentos a
Machado, Drummond, Guimarães Rosa etc. Enquanto vigorar a
fama deles, o ridículo acompanhará aqueles que os vilipendiaram. Por outro lado, os primeiros
a correrem o risco de reconhecê-los continuam associados à sua
grandeza.
Num fim de tarde de 1911, Ford
Maddox Ford, escritor inglês que
editava uma publicação chamada "English Review", aproveitou
para abrir sua correspondência.
Se bem que mal tivesse tido tempo
de ler os primeiros parágrafos do
conto que um mestre-escola do
interior lhe enviara, ele resolveu
imediatamente publicar o manuscrito e, antes de deixar às pressas o escritório para se dirigir a
uma recepção qualquer, anunciou à secretária que acabara de
descobrir um grande escritor.
Quando lhe perguntaram depois
como é que conseguira, sem sequer chegar à metade do texto,
identificar com tamanha segurança sua qualidade, ele apresentou uma análise linha por linha,
palavra por palavra do trecho
que lera, mostrando quão perfeita e discretamente o contista dominava tanto o tema quanto os
recursos expressivos. O ainda desconhecido autor do conto intitulado "Odor de Crisântemos", que
sairia em breve na revista de
Ford, era D. H. Lawrence.
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