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RÉPLICA
O narciso e a utopia
GUSTAVO STEINBERG
MARCELO MASAGÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A irritação de Marcelo Coelho
ao sair do filme "1,99" talvez pudesse se resumir no seguinte sentimento: "Como assim, vim preparado para assistir a um filme
que criticasse o consumo de forma racional e cristalina, senão
dogmática, e me deparo com um
montão de zumbis dentro de um
supermercado todo branco? Cadê
o discurso? Cadê a realidade? Cadê o drama social?".
Seria muito fácil fazer uma crítica ao consumo esquerdinha-dogmática ou católica-humanista, o
que hoje em dia dá mais ou menos na mesma. Diferentemente
da esmagadora maioria dos cineastas latino-americanos, que
usam o marxismo como referência obrigatória em seus filmes, os
roteiristas de "1,99" recorreram
ao velho Freud.
Em vez do discurso explicadinho, optamos por levantar problemas usando recursos audiovisuais. Fizemos uma espécie de terapia dos slogans: desconstruindo-os a partir deles mesmos. Por
exemplo, ao reunir numa mesma
prateleira slogans do tipo: "você
faz e acontece", "você consegue",
"ninguém embrulha você", "faz
melhor por você", "sempre com
você", "seja você mesmo", "você
conhece" e "você confia", estamos perguntando ao espectador:
"E você, vale quanto? Você pode
me comprar?". Não é mais ou menos isso o que os produtos nos
perguntam a todo momento?
Mas no filme não formulamos
essa pergunta, só sugerimos. Ao
deixar as coisas nesse estado de
sugestão-suspensão, mais do que
irritação, acaba-se criando uma
tremenda angústia.
Na verdade, estamos dentro de
um supermercado de onde tiramos as cores, tiramos os logos, tiramos quase tudo, mas sobrou
uma coisa enorme. Sobrou uma
tonelada de angústia gigante e
branca. A angústia de querer tudo
e qualquer coisa desde que seja já
e agora, a angústia da eficiência
do gerenciamento de todas as coisinhas e coisonas de nossa existência.
Será que "1.99" causa irritação
ou angústia? Será que o filme é sobre o consumismo ou sobre o
narcisismo? Será o consumismo
um estado elevado de narcisismo?
Coelho acusa o filme de "má
consciência publicitária". Não temos idéia do que seria a boa consciência publicitária -aliás consideramos que publicitários em geral só tenham uma única consciência: vender, vender, vender. É
claro, hoje todos tomam parte de
ONGs, mas na verdade só estão
diversificando e modernizando as
formas do vender. Agora não basta mais fazer uma propagandazinha e colocar o anúncio em cadeia
nacional. Tem de fazer o marketing social, o marketing ambiental, o marketing cultural, o marketing acadêmico, tem de patrocinar um montão de ONGzinhas
chapas-brancas para resolver dois
problemas básicos da classe média contemporânea: culpa e falta
de emprego.
Temos participado de debates
em universidades e uma pergunta
tem sido infalível: "Como vocês
realizaram um filme que faz crítica ao consumo e ao mesmo tempo elaboraram uma campanha
publicitária do "1,99" tão agressiva
e inventiva?", "O filme "1,99" é um
produto?".
"1,99" um produto, sim, um
produto cultural. E quais são as
especificidades de um produto
cultural? O que o diferencia de
uma lata de Leite Moça, por
exemplo? A maioria dos produtos
têm finalidades muito específicas
e determinadas: com o Leite Moça
podemos fazer um delicioso brigadeiro, com sabão em pó podemos lavar roupa. Já produtos culturais tendem a finalidades mais
complexas e contraditórias. Um
filme pode divertir, informar, fazer chorar ou até irritar...
A coisa não é tão simples assim,
afinal existem produtos culturais
que propõem finalidades muito
específicas como só entreter ou só
fazer rir. Ou ainda aqueles que se
dedicam a temas determinados:
violência ou miséria. Aliás, o produto "miséria-Terceiro-Mundista" sempre teve muito apelo junto
ao público europeu, principalmente quando vai embalado com
uma dramaturgia inteligente e dinâmica.
Viva o mercado das opções!!!
Será que a utopia do comunismo não estaria sendo realizada
quando tudo, absolutamente tudo, custar "1,99"?
Enquanto isso não acontece,
aproveite!!!
Tem uma promoção na nossa
lojinha:
Indignação: R$ 1,99; angústia:
R$ 1,99; drama: R$ 1,99; culpa:
não tem preço; revolução: não
tem mais no estoque.
Gustavo Steinberg e Marcelo Masagão são roteiristas do filme "1,99"
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