São Paulo, quarta-feira, 31 de março de 2004

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RÉPLICA

O narciso e a utopia

GUSTAVO STEINBERG
MARCELO MASAGÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A irritação de Marcelo Coelho ao sair do filme "1,99" talvez pudesse se resumir no seguinte sentimento: "Como assim, vim preparado para assistir a um filme que criticasse o consumo de forma racional e cristalina, senão dogmática, e me deparo com um montão de zumbis dentro de um supermercado todo branco? Cadê o discurso? Cadê a realidade? Cadê o drama social?".
Seria muito fácil fazer uma crítica ao consumo esquerdinha-dogmática ou católica-humanista, o que hoje em dia dá mais ou menos na mesma. Diferentemente da esmagadora maioria dos cineastas latino-americanos, que usam o marxismo como referência obrigatória em seus filmes, os roteiristas de "1,99" recorreram ao velho Freud.
Em vez do discurso explicadinho, optamos por levantar problemas usando recursos audiovisuais. Fizemos uma espécie de terapia dos slogans: desconstruindo-os a partir deles mesmos. Por exemplo, ao reunir numa mesma prateleira slogans do tipo: "você faz e acontece", "você consegue", "ninguém embrulha você", "faz melhor por você", "sempre com você", "seja você mesmo", "você conhece" e "você confia", estamos perguntando ao espectador: "E você, vale quanto? Você pode me comprar?". Não é mais ou menos isso o que os produtos nos perguntam a todo momento?
Mas no filme não formulamos essa pergunta, só sugerimos. Ao deixar as coisas nesse estado de sugestão-suspensão, mais do que irritação, acaba-se criando uma tremenda angústia.
Na verdade, estamos dentro de um supermercado de onde tiramos as cores, tiramos os logos, tiramos quase tudo, mas sobrou uma coisa enorme. Sobrou uma tonelada de angústia gigante e branca. A angústia de querer tudo e qualquer coisa desde que seja já e agora, a angústia da eficiência do gerenciamento de todas as coisinhas e coisonas de nossa existência.
Será que "1.99" causa irritação ou angústia? Será que o filme é sobre o consumismo ou sobre o narcisismo? Será o consumismo um estado elevado de narcisismo?
Coelho acusa o filme de "má consciência publicitária". Não temos idéia do que seria a boa consciência publicitária -aliás consideramos que publicitários em geral só tenham uma única consciência: vender, vender, vender. É claro, hoje todos tomam parte de ONGs, mas na verdade só estão diversificando e modernizando as formas do vender. Agora não basta mais fazer uma propagandazinha e colocar o anúncio em cadeia nacional. Tem de fazer o marketing social, o marketing ambiental, o marketing cultural, o marketing acadêmico, tem de patrocinar um montão de ONGzinhas chapas-brancas para resolver dois problemas básicos da classe média contemporânea: culpa e falta de emprego.
Temos participado de debates em universidades e uma pergunta tem sido infalível: "Como vocês realizaram um filme que faz crítica ao consumo e ao mesmo tempo elaboraram uma campanha publicitária do "1,99" tão agressiva e inventiva?", "O filme "1,99" é um produto?".
"1,99" um produto, sim, um produto cultural. E quais são as especificidades de um produto cultural? O que o diferencia de uma lata de Leite Moça, por exemplo? A maioria dos produtos têm finalidades muito específicas e determinadas: com o Leite Moça podemos fazer um delicioso brigadeiro, com sabão em pó podemos lavar roupa. Já produtos culturais tendem a finalidades mais complexas e contraditórias. Um filme pode divertir, informar, fazer chorar ou até irritar...
A coisa não é tão simples assim, afinal existem produtos culturais que propõem finalidades muito específicas como só entreter ou só fazer rir. Ou ainda aqueles que se dedicam a temas determinados: violência ou miséria. Aliás, o produto "miséria-Terceiro-Mundista" sempre teve muito apelo junto ao público europeu, principalmente quando vai embalado com uma dramaturgia inteligente e dinâmica.
Viva o mercado das opções!!!
Será que a utopia do comunismo não estaria sendo realizada quando tudo, absolutamente tudo, custar "1,99"?
Enquanto isso não acontece, aproveite!!!
Tem uma promoção na nossa lojinha:
Indignação: R$ 1,99; angústia: R$ 1,99; drama: R$ 1,99; culpa: não tem preço; revolução: não tem mais no estoque.


Gustavo Steinberg e Marcelo Masagão são roteiristas do filme "1,99"


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