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FABIO DE SOUZA ANDRADE
Vozes da memória
Ensaísta Beatriz Sarlo analisa a literatura testemunhal, que se confunde com a narrativa historiográfica
BERNARDO CARVALHO descreve
seu último romance, "O Sol se
Põe em São Paulo", como
uma resposta à leitura ávida por matéria histórica e biográfica, predominante na recepção (entusiasmada)
de "Nove Noites" e "Mongólia", seus
livros anteriores.
O trunfo de ambos estava em explorar a ambigüidade entre a realidade e sua representação, entremeando narradores em primeira
pessoa que, ao se servirem de modelos confessionais ou pseudo-documentais, acabavam por instabilizar
sua autoridade. Tratava-se de um
elogio à desconfiança, mas a tendência da maioria dos leitores foi a de ignorar a estrutura intrincada, concentrando-se na busca por um substrato de experiência real e concreta,
por trás da fantasia do escritor (visitas ao Xingu ou excursões à Ásia).
Tomar o jogo de espelhos da arte
-forma, linguagem estruturada, esforço construtivo- como cortina de
fumaça e localizar a verdade da ficção na vida do sujeito individual que
cria é resquício romântico e realista.
"Tempo Passado", da ensaísta e professora argentina Beatriz Sarlo,
mostra o quanto este modelo interpretativo, de aparente ingenuidade,
se estende a outros domínios, como
os testemunhos e memórias pessoais que se confundem com a narrativa historiográfica de tempos recentes e sombrios. Os relatos de sobreviventes do holocausto estabelecem o paradigma, mas seu foco específico está na literatura testemunhal que se segue à queda das ditaduras na América do Sul.
Sarlo examina as condições em
que os depoimentos de sobreviventes à barbárie, ferramenta jurídica
essencial para a reparação possível
dos horrores cometidos e tributo incontornável ao imperativo moral de
lembrar, participam do que denomina uma "guinada subjetiva" na memória contemporânea.
Depois da melancólica constatação do declínio da experiência narrável, da decretada e decantada
morte do autor, há algo de paradoxal
nesta recente revalorização, fetichizante, do narrador em primeira pessoa. A desconfiança dos discursos
totalizantes, saudável respeito à irredutibilidade das vozes singulares,
não pode, por outro lado, blindá-las
em carapaças de certezas invioláveis
à teoria e à análise.
Segundo Beatriz, os testemunhos
são também eles construções narrativas, ordenam e conferem inteligibilidade ao passado recente e, imersos em razões parciais, as do sujeito,
precisam passar pelo crivo de uma
análise da "retórica testemunhal"
(que nada tem de revisionista, mas
busca uma compreensão que acolha
outros recursos). O efeito crítico logrado por relatos que, ainda fiéis à
experiência pessoal, fugiram a este
modelo (como o do ensaio sobre a
lógica do rumor nas prisões, "La
Bemba", escrito por Emilio de Ípola,
ao sair da prisão em 1978) sugere
que é cedo para renunciarmos a
uma hermenêutica da suspeita, na
história como na literatura.
TEMPO PASSADO: CULTURA DA MEMÓRIA E GUINADA SUBJETIVA
Autor: Beatriz Sarlo
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 33,50 (136 págs.)
Avaliação: Ótimo
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