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Crítica/poesia
Bonvicino cria entre o refinamento e a sucata
ALCIDES VILLAÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A poesia de ontem e de
anteontem continua
revelando a carga de expressão que cada poeta equacionou de seu jeito, incluindo-se aí o modo negativo da incompatibilidade com seu tempo. Hoje, os desfrutes materiais
misturam-se a crescentes horrores, em péssima distribuição
social -e o arrastão desse cotidiano desafia qualquer figuração. A escolaridade, a reflexão e
o refinamento artístico nunca
foram tão luxuosos como culpabilidade, que é o sentimento
de que muitos se valem para se
identificarem como sujeitos.
Fico pensando nessas coisas
por conta do novo livro do poeta Regis Bonvicino.
A trajetória do autor é ilustrativa de tendências poéticas
contemporâneas, que apostaram muito (às vezes, tudo) na
suficiência da palavra como autoformalização sintética e vitoriosa, estampada no limite físico da folha de papel. Bonvicino
já exercitou largamente sua inclinação para o experimentalismo (no modo afirmativo da
vanguarda), como já esteve na
órbita de certa "poesia pura" ou
valorizou a atitude poética de
um Paulo Leminski (na aspiração de uma radicalidade trágico-irônica). Essa trajetória ganha agora, com "Página Órfã",
uma nova e surpreendente inflexão.
Predominam, como materiais dos poemas, as múltiplas
formas do lixo e do luxo acumulados, numa oposição ostensiva
entre, por exemplo, a modelo
do universo fashion e o morador de rua, o prestígio das grifes
e o fedor dos detritos. Na expressão dessas polaridades, um
universo vem imediatamente
ligado ao outro, e as palavras do
poeta traçam trilhas, implícitas
ou expostas, entre a procedência ilustrada do discurso (não
faltam alusões e remissões cultas) e as múltiplas referências à
barbárie urbana.
Mas, na arte, a referência se
realiza como modalidade de vivência; Bonvicino sabe que nenhum poeta foge disso. Sua estratégia de enfrentamento da
questão formula-se como simulação de um discurso corrente, cujo fluxo é, no entanto,
obstruído por diversas operações: gerúndios sucessivos, justaposições nominais, enumerações, sintaxe de colagens, estrofação despistante. A estrutura
de muitos poemas, como em
"Notícias", imita as seqüências
díspares de um telejornal, ou
encena, como em "Rotina", micronarrativas violentas e irônicas: um mendigo, que "gostava
/ da vida despedaçada / que o
acolhia / em sua explosiva rotina", é destroçado por uma granada achada no lixo.
Bonvicino não hesita em reconhecer e forçar os limites de
uma poesia que toma para si a
tarefa ingrata de horrorizar o
horror. Expõe sua pessoa mesma ao julgamento alheio, rebatendo inculpações ("um falso
atônito", "um irascível, mau-caráter"), acusando-se, mas
também recorrendo ao álibi da
impessoalidade. No mundo feito em pedaços, atua como o
poeta que os reproduz nos versos segmentados e eventualmente rejunta os fragmentos,
por exemplo quando os "cacos
ásperos" referem, numa orfandade em sentido próprio, os silêncios dos pais mortos, no belo
poema "Azulejo". Levada a esses paroxismos, sua poesia ecoa
aqui e ali certo vitalismo impressivo de um Ferreira Gullar,
com a diferença substancial de
que, em "Página Órfã", o vetor
das expectativas políticas ou da
perspectiva pessoal quer imergir na matéria sucateada, buscando arrastar consigo toda
ideologia ou profissão de fé estética. Mas ambas subsistem, e
o sentimento dessa subsistência faz o fundo de sua poesia,
em desafio ao poeta e às leituras que o interpretam.
ALCIDES VILLAÇA é professor de literatura
brasileira na USP.
PÁGINA ÓRFÃ
Autor: Régis Bonvicino
Editora: Martins
Quanto: R$ 29 (136 págs.)
Avaliação: Bom
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