São Paulo, sábado, 31 de março de 2007

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Crítica/poesia

Bonvicino cria entre o refinamento e a sucata

ALCIDES VILLAÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A poesia de ontem e de anteontem continua revelando a carga de expressão que cada poeta equacionou de seu jeito, incluindo-se aí o modo negativo da incompatibilidade com seu tempo. Hoje, os desfrutes materiais misturam-se a crescentes horrores, em péssima distribuição social -e o arrastão desse cotidiano desafia qualquer figuração. A escolaridade, a reflexão e o refinamento artístico nunca foram tão luxuosos como culpabilidade, que é o sentimento de que muitos se valem para se identificarem como sujeitos.
Fico pensando nessas coisas por conta do novo livro do poeta Regis Bonvicino.
A trajetória do autor é ilustrativa de tendências poéticas contemporâneas, que apostaram muito (às vezes, tudo) na suficiência da palavra como autoformalização sintética e vitoriosa, estampada no limite físico da folha de papel. Bonvicino já exercitou largamente sua inclinação para o experimentalismo (no modo afirmativo da vanguarda), como já esteve na órbita de certa "poesia pura" ou valorizou a atitude poética de um Paulo Leminski (na aspiração de uma radicalidade trágico-irônica). Essa trajetória ganha agora, com "Página Órfã", uma nova e surpreendente inflexão.
Predominam, como materiais dos poemas, as múltiplas formas do lixo e do luxo acumulados, numa oposição ostensiva entre, por exemplo, a modelo do universo fashion e o morador de rua, o prestígio das grifes e o fedor dos detritos. Na expressão dessas polaridades, um universo vem imediatamente ligado ao outro, e as palavras do poeta traçam trilhas, implícitas ou expostas, entre a procedência ilustrada do discurso (não faltam alusões e remissões cultas) e as múltiplas referências à barbárie urbana.
Mas, na arte, a referência se realiza como modalidade de vivência; Bonvicino sabe que nenhum poeta foge disso. Sua estratégia de enfrentamento da questão formula-se como simulação de um discurso corrente, cujo fluxo é, no entanto, obstruído por diversas operações: gerúndios sucessivos, justaposições nominais, enumerações, sintaxe de colagens, estrofação despistante. A estrutura de muitos poemas, como em "Notícias", imita as seqüências díspares de um telejornal, ou encena, como em "Rotina", micronarrativas violentas e irônicas: um mendigo, que "gostava / da vida despedaçada / que o acolhia / em sua explosiva rotina", é destroçado por uma granada achada no lixo.
Bonvicino não hesita em reconhecer e forçar os limites de uma poesia que toma para si a tarefa ingrata de horrorizar o horror. Expõe sua pessoa mesma ao julgamento alheio, rebatendo inculpações ("um falso atônito", "um irascível, mau-caráter"), acusando-se, mas também recorrendo ao álibi da impessoalidade. No mundo feito em pedaços, atua como o poeta que os reproduz nos versos segmentados e eventualmente rejunta os fragmentos, por exemplo quando os "cacos ásperos" referem, numa orfandade em sentido próprio, os silêncios dos pais mortos, no belo poema "Azulejo". Levada a esses paroxismos, sua poesia ecoa aqui e ali certo vitalismo impressivo de um Ferreira Gullar, com a diferença substancial de que, em "Página Órfã", o vetor das expectativas políticas ou da perspectiva pessoal quer imergir na matéria sucateada, buscando arrastar consigo toda ideologia ou profissão de fé estética. Mas ambas subsistem, e o sentimento dessa subsistência faz o fundo de sua poesia, em desafio ao poeta e às leituras que o interpretam.


ALCIDES VILLAÇA é professor de literatura brasileira na USP.

PÁGINA ÓRFÃ
Autor:
Régis Bonvicino
Editora: Martins
Quanto: R$ 29 (136 págs.)
Avaliação: Bom


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