São Paulo, sábado, 31 de março de 2007

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trecho

Conheço a Montevidéu dos
homens com horário, os que
entram às oito e meia e saem
às 12, os que retornam às duas
e meia e vão embora
definitivamente às sete. Esses
rostos crispados e suarentos,
esses passos urgentes e
tropeçantes são meus velhos
conhecidos. Mas existe a outra
cidade, a das frescas moçoilas
que no meio da tarde saem
recém-banhadinhas,
perfumadas, desdenhosas,
otimistas, espirituosas; a dos
filhinhos da mamãe que
acordam ao meio-dia e às seis
da tarde ainda trazem
impecável o colarinho branco
de tricolina importada; a dos
velhos que tomam o ônibus
até a Aduana e depois
retornam sem desembarcar,
reduzindo sua módica farra à
simples mirada reconfortante
com que percorrem a Cidade
Velha de suas nostalgias; a das
mães jovens que nunca saem
de noite e entram no cinema,
com cara de culpadas, por
volta das três e meia da tarde;
a das babás que denigrem
suas patroas enquanto as
moscas devoram as crianças; a
dos aposentados e ociosos
vários, enfim, que crêem
ganhar o céu jogando
migalhas aos pombos da
praça. Esses são meus
desconhecidos, ao menos por
enquanto. Estão instalados
muito comodamente na vida,
ao passo que eu fico
neurastênico diante de uma
folhinha com seu fevereiro
consagrado a Goya.
Trecho de "A Trégua"


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