São Paulo, sábado, 31 de março de 2007

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Crítica/antologia

Compilação traz críticas "radicais" de Lúcio Rangel

CARLOS CALADO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Radicalismo e idiossincrasias são deformações que qualquer crítico de arte deve evitar na prática de seu ofício. Um dos pioneiros na crítica de música popular no país, o carioca Lúcio Rangel (1914-79) padecia desses males, mas sua paixão pela música, expressa em uma escrita direta e bem-humorada, era capaz de seduzir até quem não compartilhava de suas opiniões.
Dispersos por vários jornais e revistas do Rio e de São Paulo, entre os anos 50 e 70, os escritos de Rangel podem enfim ser reapreciados, na antologia "Samba, Jazz & Outras Notas".
A seleção dos textos é assinada pelo jornalista Sérgio Augusto, que também traça, a título de introdução, um saboroso perfil do autor, essencial para contextualizar suas idéias.
Boêmio inveterado, Rangel conviveu tanto com músicos e compositores que admirava, como Pixinguinha, Cartola e Jacob do Bandolim, como com intelectuais e escritores do porte de Mário de Andrade, Jorge Amado, Manuel Bandeira e Graciliano Ramos.
Numa tarde de 1956, bebericando no bar Villarino, encontrou Vinicius de Moraes, aflito em busca de um parceiro para finalizar o musical "Orfeu da Conceição". Resolveu a questão no ato: chamou Tom Jobim, numa mesa ao lado, e o apresentou ao poeta. Ao deflagrar uma das parcerias mais brilhantes da MPB, Rangel tornou-se, ironicamente, personagem da história da bossa nova, que sempre rejeitou.

Ironia
Purista ao extremo, era avesso à natural mutação dos gêneros musicais. Assim como desprezava a modernização do samba sintetizada pelos bossa-novistas, jamais aceitou que o jazz de Nova Orleans, outra de suas paixões, pudesse evoluir para o swing, muito menos para o bebop. Não à toa, idolatrava Pixinguinha e Louis Armstrong, presentes em vários de seus artigos, como ícones de uma idealizada pureza na música popular.
Mesmo que suas críticas descambem para opiniões dogmáticas, é difícil resistir a seu humor e ironia ferinos. Rangel não perdoa, por exemplo, o influente crítico francês Hughes Panassié (também um defensor purista do jazz tradicional) por ter revisto algumas de suas opiniões. "Gosta de tudo. É como se gostar de [Paul] Valéry e de J.G de Araújo Jorge ao mesmo tempo", ironiza. Essa visão conservadora explica porque, nos textos de Rangel, se encontram tantas menções ao "verdadeiro samba" ou ao "jazz de verdade".
Músicos que não seguiam suas formas estéticas, como o cantor pré-bossa nova Dick Farney ("um Bing Crosby de Cascadura"), a dupla sertaneja Alvarenga e Ranchinho ("eta que ocês são chatos!") ou o jazzista Duke Ellington ("xaroposo"), jamais saíam ilesos de suas críticas.
Curiosa também era a obsessão de Rangel por apontar erros de informação veiculados por outros jornalistas, como se fosse um ombudsman informal. O jazzófilo Roberto Corte Real e o pesquisador Ary Vasconcelos foram alguns de seus alvos, em artigos que indicam seu rigor no tratamento das informações.
Nem sempre próximo do padrão ideal de crítica isenta, Rangel compensava suas idiossincrasias com a vasta cultura musical que enriquecia seus escritos. Não deixa de ser um exemplo para os que ainda pensam em se dedicar a essa modalidade jornalística em extinção.


SAMBA, JAZZ & OUTRAS NOTAS
Autor:
Lúcio Rangel
Editora: Agir
Quanto: R$ 49,90 (240 págs.)
Avaliação: Bom


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