São Paulo, segunda-feira, 31 de maio de 2004

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NELSON ASCHER

O dito e o não dito

De acordo com Stanislaw Ponte Preta, eram três as atividades mais perigosas que existiam: limpar arma de fogo carregada, bulir com mulher de delegado e comer croquete de botequim. A estas se pode acrescentar uma quarta: contar piadas e/ ou fazer trocadilhos numa língua estrangeira. Pensar que se domina perfeitamente um idioma aprendido depois da infância é geralmente sinal de ingenuidade. O "feeling" por uma língua em vias de aprendizado se manifesta de início sob a forma da desconfiança que leva o neófito a suspeitar que o que ouviu ou leu oculta, além do explícito, um segundo sentido ou um subentendido que lhe escapa.
O modo como Donald Rumsfeld classificou as informações que se obtêm ou não durante uma guerra vale igualmente para outras áreas. O secretário de Defesa americano, afirmando que há "the known knowns, the known unknowns and the unknown unknowns", remeteu a três tipos de fatores: os sabidamente conhecidos, os incógnitos cuja existência se conhece e os desconhecidamente incógnitos. Os últimos são sem dúvida os mais perigosos, pois, tão logo um fator passe da terceira categoria para a segunda, já está a meio caminho de ser decifrado.
Uma boa ilustração das categorias acima seria a de um capitão da era pré-eletrônica que sabe que seu navio se encontra na rota certa, um outro que está seguro de ter se desviado dela e um terceiro que ignora o próprio fato de que se perdeu. Não é à toa que algumas das piores doenças se desenvolvem assintomaticamente até o momento em que não há mais cura possível.
Uma húngara que vivera anos em Cuba me mostrou certa vez sua tradução para o espanhol de uma série de poemas que, compostos por seu conterrâneo Sándor Weöres (1913-89), consistiam todos em uma nota, perdão, uma linha só e, às vezes, em uma única palavra-valise.
Tal era o caso de "tojáséj" (pronunciado como um paulistano diria "tô e achei"), uma montagem verbal que, amalgamando "ovo" (tojás) e "noite" (éj), resume em si a idéia, comum a diversas mitologias, da noite ou treva primordial, do caos escuro que deu à luz o mundo. O neologismo magiar, que evoca o "ovo novelo" de Augusto de Campos e o "noctivozmusgo" (noite + voz + musgo) do argentino Olivério Girondo, é difícil de verter uma vez que, quanto mais breve um poema, menor é a margem de manobra oferecida ao tradutor e, portanto, menos traduzível ele se revela. Uma versão insatisfatória seria "noitovular", enquanto "ovinoite" pareceria mais interessante se não incluísse uma indesejável ovelha.
O ciclo poético se chama no original "Egysoros Versek" (Poemas de um Verso), e a escritora se orgulhava de ter lhe dado, em espanhol, um título que, mais do que simplesmente adequado, era um trocadilho que, segundo ela, fazia jus ao espírito de um autor apegado aos jogos de palavras: "Uni-versos". Seu "achado", contudo, não soava convincente e a razão disto, do ponto de vista, ou melhor, do ponto auditivo de um falante nativo do castelhano ou do português, não residia propriamente no trocadilho cujos dois sentidos se combinavam sem atrito, ambos se aplicando corretamente ao conjunto. O problema advinha antes de sua obviedade. Trata-se, afinal, de uma solução tão fácil que hispanófonos e lusófonos hesitariam em usá-la.
O que torna raríssimos os tradutores capazes de verter uma obra para um idioma que não o seu se relaciona sobretudo com o deslumbramento, semelhante ao dos novos ricos, diante da opulência de um universo lingüístico recém-conquistado. Embora qualquer versejador lusófono que se preza evite meticulosamente as rimas em "ão", estas costumam exercer um verdadeiro fascínio sobre quem se familiarizara previamente com línguas nas quais este som inexiste.
Um bom texto, em particular um bom conto, piada ou poema, se compõe tanto do que contém quanto daquilo que omite. Uma frase a mais desequilibra uma narrativa breve e insulta a inteligência de quem o lê. Uma explicação desnecessária, por mínima que seja, corta pela metade a graça de uma piada. Uma palavra extra ou mal usada converte versos potencialmente bons numa versalhada evidentemente redundante. Na poesia, aliás, a situação chega a ser tão grave que um mau poema, mais do que mero peso morto, pode até desvalorizar o restante de uma coletânea inteira, levando o leitor a supor que os bem realizados pelo poeta teriam nascido do acaso.
Ainda assim, a sinergia provocada pela justaposição de duas línguas acarreta resultados, não raro, surpreendentes. Talvez o exemplo mais notável seja "O Corvo" de Edgar Allan Poe. Este poema geralmente irrita os anglófonos por causa quer de seu ritmo demasiadamente marcado, quer devido a seu uso impreciso de verbos e adjetivos. No entanto, entre seus admiradores e tradutores se acham poetas e prosadores como Baudelaire, Mallarmé, Paul Valéry, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Roman Jakobson etc. T.S. Eliot inclusive procurou em um ensaio arguto ("From Poe to Valéry", 1948) entender, à luz de seus defeitos, sua fama e influência no estrangeiro.
Parte do enigma se explica pelo fato de que muitas traduções de "O Corvo" superam o original. Mas por que grandes escritores e críticos se interessariam por um poema tão deficiente? Porque as falhas do original, derivadas justamente daquilo que o americano não deixou de escrever, tampouco saltam aos olhos de franceses, portugueses, brasileiros ou russos. Se o que não deveria ter sido dito no poema bloqueia, para os anglo-saxões, sua apreciação, isso interfere muito menos na leitura feita por quem aprendeu o inglês como segunda ou terceira língua.


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