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NELSON ASCHER
O dito e o não dito
De acordo com Stanislaw
Ponte Preta, eram três as
atividades mais perigosas que
existiam: limpar arma de fogo
carregada, bulir com mulher de
delegado e comer croquete de botequim. A estas se pode acrescentar uma quarta: contar piadas e/
ou fazer trocadilhos numa língua
estrangeira. Pensar que se domina perfeitamente um idioma
aprendido depois da infância é
geralmente sinal de ingenuidade.
O "feeling" por uma língua em
vias de aprendizado se manifesta
de início sob a forma da desconfiança que leva o neófito a suspeitar que o que ouviu ou leu oculta,
além do explícito, um segundo
sentido ou um subentendido que
lhe escapa.
O modo como Donald Rumsfeld
classificou as informações que se
obtêm ou não durante uma guerra vale igualmente para outras
áreas. O secretário de Defesa
americano, afirmando que há
"the known knowns, the known
unknowns and the unknown
unknowns", remeteu a três tipos
de fatores: os sabidamente conhecidos, os incógnitos cuja existência se conhece e os desconhecidamente incógnitos. Os últimos são
sem dúvida os mais perigosos,
pois, tão logo um fator passe da
terceira categoria para a segunda, já está a meio caminho de ser
decifrado.
Uma boa ilustração das categorias acima seria a de um capitão
da era pré-eletrônica que sabe
que seu navio se encontra na rota
certa, um outro que está seguro de
ter se desviado dela e um terceiro
que ignora o próprio fato de que
se perdeu. Não é à toa que algumas das piores doenças se desenvolvem assintomaticamente até o
momento em que não há mais cura possível.
Uma húngara que vivera anos
em Cuba me mostrou certa vez
sua tradução para o espanhol de
uma série de poemas que, compostos por seu conterrâneo Sándor Weöres (1913-89), consistiam
todos em uma nota, perdão, uma
linha só e, às vezes, em uma única
palavra-valise.
Tal era o caso de "tojáséj" (pronunciado como um paulistano
diria "tô e achei"), uma montagem verbal que, amalgamando
"ovo" (tojás) e "noite" (éj), resume em si a idéia, comum a diversas mitologias, da noite ou treva
primordial, do caos escuro que
deu à luz o mundo. O neologismo
magiar, que evoca o "ovo novelo"
de Augusto de Campos e o "noctivozmusgo" (noite + voz + musgo)
do argentino Olivério Girondo, é
difícil de verter uma vez que,
quanto mais breve um poema,
menor é a margem de manobra
oferecida ao tradutor e, portanto,
menos traduzível ele se revela.
Uma versão insatisfatória seria
"noitovular", enquanto "ovinoite" pareceria mais interessante se
não incluísse uma indesejável
ovelha.
O ciclo poético se chama no original "Egysoros Versek" (Poemas
de um Verso), e a escritora se orgulhava de ter lhe dado, em espanhol, um título que, mais do que
simplesmente adequado, era um
trocadilho que, segundo ela, fazia
jus ao espírito de um autor apegado aos jogos de palavras: "Uni-versos". Seu "achado", contudo,
não soava convincente e a razão
disto, do ponto de vista, ou melhor, do ponto auditivo de um falante nativo do castelhano ou do
português, não residia propriamente no trocadilho cujos dois
sentidos se combinavam sem atrito, ambos se aplicando corretamente ao conjunto. O problema
advinha antes de sua obviedade.
Trata-se, afinal, de uma solução
tão fácil que hispanófonos e lusófonos hesitariam em usá-la.
O que torna raríssimos os tradutores capazes de verter uma
obra para um idioma que não o
seu se relaciona sobretudo com o
deslumbramento, semelhante ao
dos novos ricos, diante da opulência de um universo lingüístico recém-conquistado. Embora qualquer versejador lusófono que se
preza evite meticulosamente as
rimas em "ão", estas costumam
exercer um verdadeiro fascínio
sobre quem se familiarizara previamente com línguas nas quais
este som inexiste.
Um bom texto, em particular
um bom conto, piada ou poema,
se compõe tanto do que contém
quanto daquilo que omite. Uma
frase a mais desequilibra uma
narrativa breve e insulta a inteligência de quem o lê. Uma explicação desnecessária, por mínima
que seja, corta pela metade a graça de uma piada. Uma palavra
extra ou mal usada converte versos potencialmente bons numa
versalhada evidentemente redundante. Na poesia, aliás, a situação
chega a ser tão grave que um mau
poema, mais do que mero peso
morto, pode até desvalorizar o
restante de uma coletânea inteira, levando o leitor a supor que os
bem realizados pelo poeta teriam
nascido do acaso.
Ainda assim, a sinergia provocada pela justaposição de duas
línguas acarreta resultados, não
raro, surpreendentes. Talvez o
exemplo mais notável seja "O
Corvo" de Edgar Allan Poe. Este
poema geralmente irrita os anglófonos por causa quer de seu ritmo demasiadamente marcado,
quer devido a seu uso impreciso
de verbos e adjetivos. No entanto,
entre seus admiradores e tradutores se acham poetas e prosadores
como Baudelaire, Mallarmé, Paul
Valéry, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Roman Jakobson etc.
T.S. Eliot inclusive procurou em
um ensaio arguto ("From Poe to
Valéry", 1948) entender, à luz de
seus defeitos, sua fama e influência no estrangeiro.
Parte do enigma se explica pelo
fato de que muitas traduções de
"O Corvo" superam o original.
Mas por que grandes escritores e
críticos se interessariam por um
poema tão deficiente? Porque as
falhas do original, derivadas justamente daquilo que o americano
não deixou de escrever, tampouco
saltam aos olhos de franceses,
portugueses, brasileiros ou russos.
Se o que não deveria ter sido dito
no poema bloqueia, para os anglo-saxões, sua apreciação, isso
interfere muito menos na leitura
feita por quem aprendeu o inglês
como segunda ou terceira língua.
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