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Crítica/"Cinemateca"
Eucanaã Ferraz cria poemas como uma seqüência de cenas
Em seu novo livro, "Cinemateca", autor imprime qualidade imagética à escrita
ALCIDES VILLAÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Parto de uma imagem de
Eucanaã Ferraz para
tratar de "Cinemateca",
seu novo livro de poemas. Imagine o leitor um "céu demorado
e baixo": baixo, a ponto de se fazer reconhecer ainda como altura no chão das experiências
corpóreas; e demorado, para
mobilizá-las numa surpreendente urdidura temporal, que
lhes imprime a qualidade de
uma nova natureza.
Transfiguram-se, com isso,
as faces imediatas do mundo,
não porque o poeta queira
abandoná-lo, pelo contrário:
deseja reconhecê-lo como fonte material de um novo encantamento, que pode estar, por
exemplo, na mulher regando as
plantas do jardim ou -por que
não?- na reação de um grave
piano Steinway à concorrência
de um besouro igualmente envernizado em negro, a zumbir
na sala.
Em ambos os casos haverá
surpresa: tanto o quadro amoroso, de moldura mais reconhecível, como a cena algo surrealista trazem consigo aquele
impacto poético que torna misterioso o "natural", e natural o
"misterioso".
Os poemas surgem como seqüência de cenas diversas, pacientemente montadas enquanto recolhidas de uma bem
provida cinemateca interior, ao
comando de uma imaginação à
flor do corpo e de uma sábia
sensibilidade.
No poema "O Tipo", representa-se um escritor "inflexível
ao fútil, embora / embevecido
pelo banal, desde que sábio".
Uma sabedoria que cabe à lírica
moderna e marca a poesia de
Eucanaã é a de se fortalecer
com a qualidade das imagens,
das sensações e de uma temporalidade descartadas pela pressa das automatizações.
Mas não haveria a mesma
qualidade de imagens não fosse
a excelência no emprego do ritmo. Diferentemente das artes
visuais, em que a base é a imagem ótica, a poesia faz a figura
impregnar-se e mesmo depender da música da fala. Timbres,
inflexões, andamento, silêncios
são indissociáveis de uma plena
visualização poética.
Eucanaã, confessadamente
um poeta seduzido pela pintura
e pela escultura, por Matisse e
por Weissmann, explora num
delicado equilíbrio o rendimento da imagem (mental) da
poesia e da sonoridade (material) do discurso.
Domina a totalidade da sensação construída, valendo-se
do controle de seqüências rítmicas, que estabelecem uma
disciplina, nas quais irrompem
as figuras, que aprofundam a
imaginação.
Essa convergência traduz-se
num admirável efeito poético: a
leitura dos poemas corre numa
sintaxe e num tempo entrecortados por vírgulas que, surpreendentemente, em nada
obstam a sensação de fluidez
das imagens; ao contrário, estas
se tornam mais intensas justamente porque ativadas numa
corrente sonora cuja pulsação é
ao mesmo tempo ordenadora e
libertária.
Seguindo a sugestão do título
do livro, pode-se estabelecer
uma analogia com o cinema: os
cortes na filmagem e a edição
das cenas produzem um tipo de
continuidade que não é estranha aos tantos poemas narrativos de Eucanaã.
O que às vezes parece encaminhar-se para uma geométrica justaposição, de feitio construtivista, arma uma investida
exploratória do mundo, numa
trilha reflexiva: "A delicadeza
dá dois passos./ A vontade
avança. A dúvida / recua".
A força de gravidade dos poemas de "Cinemateca" puxa o
leitor para as ações materiais e
sugestivas de uma costureira,
de um pintor, de um mágico;
para a água-forte do jogo amoroso; para o abate de um boi;
para uma brincadeira na piscina da infância. A diversidade da
matéria poética parte de um
mundo habitado e reconstruído pelo poeta -razão para
aplaudir seu livro.
ALCIDES VILLAÇA é professor de literatura
brasileira na USP
CINEMATECA
Autor: Eucanaã Ferraz
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 36 (176 págs.)
Avaliação: ótimo
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