São Paulo, sábado, 31 de maio de 2008

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Crítica/"Cinemateca"

Eucanaã Ferraz cria poemas como uma seqüência de cenas

Em seu novo livro, "Cinemateca", autor imprime qualidade imagética à escrita

ALCIDES VILLAÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Parto de uma imagem de Eucanaã Ferraz para tratar de "Cinemateca", seu novo livro de poemas. Imagine o leitor um "céu demorado e baixo": baixo, a ponto de se fazer reconhecer ainda como altura no chão das experiências corpóreas; e demorado, para mobilizá-las numa surpreendente urdidura temporal, que lhes imprime a qualidade de uma nova natureza.
Transfiguram-se, com isso, as faces imediatas do mundo, não porque o poeta queira abandoná-lo, pelo contrário: deseja reconhecê-lo como fonte material de um novo encantamento, que pode estar, por exemplo, na mulher regando as plantas do jardim ou -por que não?- na reação de um grave piano Steinway à concorrência de um besouro igualmente envernizado em negro, a zumbir na sala.
Em ambos os casos haverá surpresa: tanto o quadro amoroso, de moldura mais reconhecível, como a cena algo surrealista trazem consigo aquele impacto poético que torna misterioso o "natural", e natural o "misterioso".
Os poemas surgem como seqüência de cenas diversas, pacientemente montadas enquanto recolhidas de uma bem provida cinemateca interior, ao comando de uma imaginação à flor do corpo e de uma sábia sensibilidade.
No poema "O Tipo", representa-se um escritor "inflexível ao fútil, embora / embevecido pelo banal, desde que sábio".
Uma sabedoria que cabe à lírica moderna e marca a poesia de Eucanaã é a de se fortalecer com a qualidade das imagens, das sensações e de uma temporalidade descartadas pela pressa das automatizações.
Mas não haveria a mesma qualidade de imagens não fosse a excelência no emprego do ritmo. Diferentemente das artes visuais, em que a base é a imagem ótica, a poesia faz a figura impregnar-se e mesmo depender da música da fala. Timbres, inflexões, andamento, silêncios são indissociáveis de uma plena visualização poética.
Eucanaã, confessadamente um poeta seduzido pela pintura e pela escultura, por Matisse e por Weissmann, explora num delicado equilíbrio o rendimento da imagem (mental) da poesia e da sonoridade (material) do discurso.
Domina a totalidade da sensação construída, valendo-se do controle de seqüências rítmicas, que estabelecem uma disciplina, nas quais irrompem as figuras, que aprofundam a imaginação.
Essa convergência traduz-se num admirável efeito poético: a leitura dos poemas corre numa sintaxe e num tempo entrecortados por vírgulas que, surpreendentemente, em nada obstam a sensação de fluidez das imagens; ao contrário, estas se tornam mais intensas justamente porque ativadas numa corrente sonora cuja pulsação é ao mesmo tempo ordenadora e libertária.
Seguindo a sugestão do título do livro, pode-se estabelecer uma analogia com o cinema: os cortes na filmagem e a edição das cenas produzem um tipo de continuidade que não é estranha aos tantos poemas narrativos de Eucanaã.
O que às vezes parece encaminhar-se para uma geométrica justaposição, de feitio construtivista, arma uma investida exploratória do mundo, numa trilha reflexiva: "A delicadeza dá dois passos./ A vontade avança. A dúvida / recua".
A força de gravidade dos poemas de "Cinemateca" puxa o leitor para as ações materiais e sugestivas de uma costureira, de um pintor, de um mágico; para a água-forte do jogo amoroso; para o abate de um boi; para uma brincadeira na piscina da infância. A diversidade da matéria poética parte de um mundo habitado e reconstruído pelo poeta -razão para aplaudir seu livro.


ALCIDES VILLAÇA é professor de literatura brasileira na USP


CINEMATECA
Autor: Eucanaã Ferraz
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 36 (176 págs.)
Avaliação: ótimo



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