São Paulo, sábado, 31 de maio de 2008 |
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RODAPÉ LITERÁRIO Experimento e intervenção
MANUEL DA COSTA PINTO COLUNISTA DA FOLHA "HÁ NESTE açude lendas afogadas,/ deuses dormindo o sono que os transcende". Assim começa o soneto "O Açude", do livro homônimo de Affonso Ávila. "Onde a vida viça/ a um sol ou graça/ e à luz se esgarça/ forma ou flor cambiante escante/ fio de ar ou asa/ pânica ou impávida/ entanto ávida de ritmo e instante/ ao vir a ser de ser/ aula de nascer/ mínimo". Este outros versos compõem o poema "Crisálida". Entre um e outro, há um intervalo de mais de 50 anos, no qual surgiram livros fundamentais para a poesia contemporânea, como "Barrocolagens", "O Visto e o Imaginado" e "A Lógica do Erro" -todos reunidos agora em "Homem ao Termo". Uma obra dessa extensão não permite generalizações, mas permite apontar alguns momentos decisivos. Em depoimento incluído em seu livro de ensaios "O Poeta e a Consciência Crítica" (reeditado pela Perspectiva), o próprio Ávila definiu seus livros iniciais ("Sonetos da Descoberta", "Glosa da Primavera") como "experiência lírico-subjetiva" na qual predomina uma temática amorosa que em nada sugere a poética criada a partir de "Carta do Solo". Nesse livro de 1961, aparece um procedimento recorrente em seu trabalho: a repetição de células lingüísticas que vão sendo glosadas, "comentadas" por outros versos de modo a compor uma espécie de coro teatral. Num poema como "Os Anciãos", ele escreve: "Com seus estuários/ o homem descerra os infernos/ -na cobiça e seus arpões/ -na moeda e seus reversos/ -na serpente e seus assomos.// Com seus instrumentos/ o homem trabalha a esperança/ -no acaso e suas jazidas/ -no vazio e suas âncoras/ -no fausto e sua rapina". Os paralelismos e o ritmo marcado não se destinam aqui a criar harmonias, mas introduzem diferentes vozes que parecem discutir em praça pública sobre temas como trabalho, exploração, usura. Ou seja, a obra de Ávila -que faz largo uso de chavões populares e clichês da linguagem burocrática para descontruí-los formalmente, criando sentidos críticos- é um exemplo raro de associação entre a arte experimental e a capacidade de intervenção política. A essa altura de sua obra, Ávila atuava, ao lado dos intelectuais mineiros Fábio Lucas e Rui Mourão, como editor da revista "Tendência" -conseguindo assim realizar aquele "salto participativo" que Décio Pignatari havia proposto para a poesia concreta. E, se livros posteriores como "Código de Minas" e "O Belo e o Velho" apresentam afinidades com os concretos, a fonte principal do poeta que neste ano completa 80 anos está na tradição das cantigas de escárnio e maldizer e, sobretudo, na verve satírica do barroco -tema sobre o qual, aliás, é um dos mais importantes estudiosos no Brasil. HOMEM AO TERMO Autor: Affonso Ávila Editora: UFMG Quanto: R$ 70 (672 págs.) Avaliação: ótimo Texto Anterior: Trechos Próximo Texto: Doações e obras "ocultas" valorizam exposição coletiva Índice |
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