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"UMA CURVA NO RIO"
Autor traça perfil sobre domínio árabe no continente
Naipaul revela os fantasmas de uma África dilacerada
Akmal Rajut - 21.jun.2000/Associated Press
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Mulher e criança aguardam chegada de água em Nairóbi, Quênia; continente africano é tema do livro |
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Em determinado momento de
"Uma Curva no Rio", do Prêmio Nobel de 2001, V.S. Naipaul,
o domínio árabe na África Central
é descrito como a "luz de uma estrela, que ainda viaja depois da extinção da estrela".
O protagonista do romance, Salim, não é árabe, e sim descendente de indianos muçulmanos, mas
mais de uma vez compara-se ao
grupo de primeiros colonizadores
da África, que franquearam a chegada de seus antepassados ao
continente.
Os árabes, assim como a família
de Salim, tinham o costume de
manter escravos. Tratava-se, segundo ele, de hábito arraigado,
que não era visto como um mal
nem pelos senhores nem por seus
servos. Mas era um costume bárbaro, na óptica dos segundos invasores da África, os europeus, e
foi duramente combatido.
Quando o romance se inicia, no
início da década de 60, o continente passa por uma onda de independência, e os "homens brancos", assim como muitos árabes,
indianos, persas, além de milhares de africanos, são mortos em
carnificinas selvagens. Ódios tribais acirram os conflitos até que
uma nova ordem pós-colonial é
finalmente instaurada.
O romance é dividido em quatro partes, que descrevem, num
movimento de ascensão e queda,
o rápido florescimento econômico posterior à independência e o
caos a que retorna o país, após a
guinada nacionalista do novo
presidente, alcunhado de Grande
Homem.
A curva do rio a que alude o título refere-se "ao ponto mais avançado que os árabes haviam chegado no século anterior". A cidade
que se instala às suas margens é
um centro de trocas. É ali que
afluem as tribos das florestas e os
"estrangeiros" provenientes do litoral leste. É ali que o Grande Homem manda construir um monumental centro universitário, onde
os descendentes tribais confrontam sua cultura com as idéias externas, sobretudo o marxismo.
Nesse contexto conturbado, Salim associa-se à luz de uma estrela
morta. Suas origens não podem
ser recuperadas. A certa altura,
um amigo dele, também descendente de indianos, vai à embaixada da Índia, à procura de um cargo diplomático. Abaixo dos retratos de Gandhi e Nehru, o embaixador o destrata: "Como poderíamos aceitar alguém com a lealdade dividida?".
Tal como o amigo, Salim é um
"homem sem vínculos". Sua existência é uma constante busca de
identidade. Quem ele é? Africano?
Estrangeiro? Representante de
antigos colonizadores? Adepto relutante da nova ordem? "Uma
Curva..." trata de existências fantasmáticas numa África dilacerada entre a barbárie recordativa de
"O Coração das Trevas" e um impulso febril de modernização.
Já para o fim do romance, Salim
passa uma breve temporada em
Londres. Lá ele avista uma milionária árabe, antecedida por um
rapaz que lhe carrega as sacolas de
compra. Sua familiaridade com
os costumes islâmicos o faz adivinhar: é um escravo. A passagem
sem dúvida ajuda a alimentar as
críticas dos detratores de Naipaul,
que o acusam de macular a imagem dos povos coloniais.
Mas a verdade é que Naipaul
não faz concessões. Os africanos
são desesperados, instáveis e violentos. Os europeus são ladinos,
neuróticos e desinformados. E os
muçulmanos se apegam a tradições que lhes outorga o direito de
oprimir suas mulheres e conservar escravos.
Numa entrevista dada mais ou
menos na mesma época em que
transcorre a ação do romance, o
pensador Roland Barthes afirmou que não acredita haver uma
real literatura de esquerda. Por
sua própria estrutura, a ficção só
estimularia as respostas, mas não
poderia fornecê-las.
Pode-se dizer que o mesmo se
dá nos romances de Naipaul. O
choque cultural, expressão hoje
em dia tão criticada, mas fundamental se quisermos entender os
livros do escritor, instaura uma
análise da alma humana, dos motores que a tornam tão misteriosa,
por vezes cruel, por vezes mesquinha, por vezes comovente. Não há
respostas, mas dezenas de interrogações.
Uma Curva no Rio
Autor: V.S. Naipaul
Tradutor: Carlos Graieb
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 45,00 (314 págs.)
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