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TRÉPLICA
A nova Guerra do Bacalhau
MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO
Uns lêem com os olhos; outros, com o fígado. O professor Francisco Carlos Teixeira da
Silva escolheu o segundo modo
de leitura, fazendo ataques pessoais contra mim em sua réplica à
resenha que escrevi sobre a "Enciclopédia das Guerras e Revoluções do Século 20", organizada
por ele.
Em lugar de responder à essência da crítica, ele preferiu desancar o crítico: disse que cometi erros e enganei o leitor. Sua réplica
concentrou-se basicamente em
minudências. Algumas são só risíveis -como quando defendeu a
"epígrafe" do livro, a música do
Pink Floyd "Dogs of War", dizendo se tratar de "um clássico dos
anos 60", embora não passe de
um caça-níqueis dos anos 80. Ou
quando disse, sem me conhecer,
que não gostei do verbete "banhos de mar" por ser paulista.
Outros ataques merecem resposta porque me atribuem erros e
distorcem o que escrevi.
O professor disse que errei "redondamente" por ter dito, segundo ele, que "não há tradição de
conciliação partidária na história
dos EUA". A réplica sustenta que
"há uma boa tradição de convites" a parlamentares adversários
para um novo governo. Assim como no livro, a réplica contorce
conceitos para justificar equívocos: convites a parlamentares adversários estão longe de transformar uma administração em "governo de consenso nacional", que
é o que diz o verbete em questão.
O professor afirma depois que
errei ao dizer que "não há provas
da participação de Kissinger" no
golpe de Pinochet no Chile. Eu
nunca escrevi isso. Eu disse apenas que não há documentos que
respaldem a afirmação, contida
no verbete "Operação Condor e
Política", segundo a qual Kissinger e Nixon foram os "autores intelectuais" do golpe chileno.
Os documentos disponíveis
mostram profundo envolvimento
dos EUA na derrubada de Allende, mas atribuir sua "autoria intelectual" ao governo americano,
diminuindo o papel histórico de
Pinochet e ignorando as profundas divisões da sociedade chilena,
é cometer um grave equívoco.
Em seguida, o professor afirma
que errei de novo ao dizer que o livro não dá "qualquer tratamento
para o tema "darwinismo social'".
Outra vez a réplica coloca em meu
texto palavras que não escrevi.
Em minha resenha está dito que o
leitor chegará ao final da "Enciclopédia" sem que haja um verbete específico para darwinismo social, enquanto outros assuntos
substancialmente menos importantes, como "Guerra do Bacalhau", tiveram esse privilégio.
Depois, a resenha diz que eu critiquei sem motivo a ausência de
Norbert Elias na bibliografia de
verbetes relativos ao Holocausto.
O que eu disse, no entanto, foi
que, enquanto o respeitado sociólogo alemão estava ausente, Norman Finkelstein, cuja contribuição para o estudo do Holocausto é
zero, ganhou duas menções, ambas elogiosas.
Por fim, o professor pergunta:
"Será que em 1.008 páginas, em
dezenas de livros e autores, nada
há de bom?". Óbvio que há. Acho
até que os autores desses verbetes
deveriam se revoltar, porque seu
bom trabalho liqüefez-se numa
barafunda conceitual.
E aqui chegamos, enfim, à discussão sobre a escrita da história,
que estava no centro da minha resenha e que escapou ao professor,
preocupado demais em desqualificar-me. Acredito que seja necessário sobretudo refletir sobre o
peso das palavras, que não deveriam ser tratadas como chiclete.
Desfigurar um termo decisivo
como "revolução", ao ponto de
relacioná-lo com "turfe" e "adesivo", como fez a "Enciclopédia", é
crime de lesa-razão. Mais que isso: no frigir dos ovos, mostra incapacidade de transmissão de conhecimento, não do conhecimento banal, mas daquele que revela
os processos humanos. Diante
disso, faço minha uma pergunta
de Benjamin em "Experiência e
Pobreza": "Quem ainda encontra
pessoas que saibam contar histórias como devem ser contadas?".
O professor, a julgar por sua "Enciclopédia" e pela reação à minha
resenha, não é uma delas.
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