São Paulo, sábado, 31 de julho de 2004

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TRÉPLICA

A nova Guerra do Bacalhau

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

Uns lêem com os olhos; outros, com o fígado. O professor Francisco Carlos Teixeira da Silva escolheu o segundo modo de leitura, fazendo ataques pessoais contra mim em sua réplica à resenha que escrevi sobre a "Enciclopédia das Guerras e Revoluções do Século 20", organizada por ele.
Em lugar de responder à essência da crítica, ele preferiu desancar o crítico: disse que cometi erros e enganei o leitor. Sua réplica concentrou-se basicamente em minudências. Algumas são só risíveis -como quando defendeu a "epígrafe" do livro, a música do Pink Floyd "Dogs of War", dizendo se tratar de "um clássico dos anos 60", embora não passe de um caça-níqueis dos anos 80. Ou quando disse, sem me conhecer, que não gostei do verbete "banhos de mar" por ser paulista.
Outros ataques merecem resposta porque me atribuem erros e distorcem o que escrevi.
O professor disse que errei "redondamente" por ter dito, segundo ele, que "não há tradição de conciliação partidária na história dos EUA". A réplica sustenta que "há uma boa tradição de convites" a parlamentares adversários para um novo governo. Assim como no livro, a réplica contorce conceitos para justificar equívocos: convites a parlamentares adversários estão longe de transformar uma administração em "governo de consenso nacional", que é o que diz o verbete em questão.
O professor afirma depois que errei ao dizer que "não há provas da participação de Kissinger" no golpe de Pinochet no Chile. Eu nunca escrevi isso. Eu disse apenas que não há documentos que respaldem a afirmação, contida no verbete "Operação Condor e Política", segundo a qual Kissinger e Nixon foram os "autores intelectuais" do golpe chileno.
Os documentos disponíveis mostram profundo envolvimento dos EUA na derrubada de Allende, mas atribuir sua "autoria intelectual" ao governo americano, diminuindo o papel histórico de Pinochet e ignorando as profundas divisões da sociedade chilena, é cometer um grave equívoco.
Em seguida, o professor afirma que errei de novo ao dizer que o livro não dá "qualquer tratamento para o tema "darwinismo social'". Outra vez a réplica coloca em meu texto palavras que não escrevi. Em minha resenha está dito que o leitor chegará ao final da "Enciclopédia" sem que haja um verbete específico para darwinismo social, enquanto outros assuntos substancialmente menos importantes, como "Guerra do Bacalhau", tiveram esse privilégio.
Depois, a resenha diz que eu critiquei sem motivo a ausência de Norbert Elias na bibliografia de verbetes relativos ao Holocausto. O que eu disse, no entanto, foi que, enquanto o respeitado sociólogo alemão estava ausente, Norman Finkelstein, cuja contribuição para o estudo do Holocausto é zero, ganhou duas menções, ambas elogiosas.
Por fim, o professor pergunta: "Será que em 1.008 páginas, em dezenas de livros e autores, nada há de bom?". Óbvio que há. Acho até que os autores desses verbetes deveriam se revoltar, porque seu bom trabalho liqüefez-se numa barafunda conceitual.
E aqui chegamos, enfim, à discussão sobre a escrita da história, que estava no centro da minha resenha e que escapou ao professor, preocupado demais em desqualificar-me. Acredito que seja necessário sobretudo refletir sobre o peso das palavras, que não deveriam ser tratadas como chiclete.
Desfigurar um termo decisivo como "revolução", ao ponto de relacioná-lo com "turfe" e "adesivo", como fez a "Enciclopédia", é crime de lesa-razão. Mais que isso: no frigir dos ovos, mostra incapacidade de transmissão de conhecimento, não do conhecimento banal, mas daquele que revela os processos humanos. Diante disso, faço minha uma pergunta de Benjamin em "Experiência e Pobreza": "Quem ainda encontra pessoas que saibam contar histórias como devem ser contadas?". O professor, a julgar por sua "Enciclopédia" e pela reação à minha resenha, não é uma delas.


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