São Paulo, sábado, 31 de julho de 2010 |
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DRAUZIO VARELLA Por amor
QUANDO VI o tamanho das filas diante dos caixas, desanimei. Tinha ido ao supermercado para comprar um mísero pacote de café, pretensão insignificante comparada à dos donos dos carrinhos abarrotados à minha frente. Na dúvida se ia embora ou levava o café, vi que um funcionário se aproximou: "Faz tempo que o senhor não aparece". "É. Muito trabalho." Ele hesitou alguns segundos. "O senhor não está se lembrando de mim." Aparentava 40 e poucos anos, não era alto nem baixo, nem forte nem fraco, tinha o cabelo cortado rente, vestia camisa azul claro e gravata listada, características que não me ajudaram. Olhei discretamente para o crachá, mas a fotografia com o nome estava virada para o lado de dentro. Ele veio em meu socorro. "Sou o gerente. O senhor não pôde me reconhecer porque eu perdi 24 quilos." Sorriu orgulhoso e virou o crachá para mostrar a foto tirada antes do emagrecimento. "Veja como eu era. Meu rosto estava tão inchado que os olhos pareciam de chinês. O pescoço, em vez de vir do queixo para dentro, fazia uma dobra e se projetava para frente feito papo de galo esganado." Com um gesto desenhou no ar o volume do pescoço antigo, depois apertou-o e puxou a pele três vezes para mostrar como estava magro agora. Perguntei se tinha feito cirurgia para reduzir o estômago. Quase ofendido, explicou que havia mudado os hábitos alimentares e comprado uma esteira. Quando eu quis saber de onde viera a motivação para tão difícil empreitada, olhou sério para mim. "Do amor." O amor havia entrado em sua vida pela porta do supermercado. Segundo disse, a moça tinha olhos de mel e um sorriso que iluminava a loja inteira. "Ela queria saber em que prateleira estava o leite condensado. Quando me virei para responder, perdi a naturalidade. Ela abaixou o olhar. Amor à primeira vista." O encontro o surpreendeu num momento de fragilidade; fazia pouco que tinha terminado um casamento de 12 anos sem filhos, mas com brigas a perder a conta, provocadas pelos ciúmes que a esposa tinha de todas as mulheres que chegavam num raio de dez metros do marido, incluídas as freguesas da loja de eletrodomésticos na qual ele era vendedor. "Chegou a pôr peruca e óculos escuros para me vigiar no trabalho. Era o cão vestido de saia. Por causa de um escândalo que ela armou, fui obrigado a pedir demissão." A moça do sorriso recusou com delicadeza a ajuda que ele ofereceu na visita seguinte ao supermercado. Na terceira ocasião, cumprimentou-o assim que entrou. Na quarta, trocaram algumas palavras. Desde então, a imagem dessa mulher passou a fazer parte do cotidiano solitário do gerente. As ações mais triviais do dia a dia eram realizadas como se ela estivesse presente. Ir para o trabalho se tornou fonte de prazer e de ansiedade contínua à espera de que ela viesse. Eram cinzentos os dias em que não a via; radiantes quando acontecia o contrário. Começou o regime e comprou a esteira. Gordo como estava, jamais teria coragem para confessar seus sentimentos. Quando já tinha perdido dez quilos, o destino colocou os dois na plataforma do metrô. No trem, conversaram com timidez; ela falou do trabalho no escritório de arquitetura; ele, dos percalços de gerenciar mais de 30 funcionários. Nenhuma palavra mais íntima. Daí em diante, os encontros no supermercado se tornaram mais frequentes e menos formais. Chegavam a rir sem motivo das coisas que diziam um para o outro. Uma noite ela entrou quando já estavam fechando as portas. Vinte e dois quilos mais magro, ele tirou o crachá e pediu licença para acompanhá-la até a esquina. No caminho confessou estar apaixonado pela primeira vez na vida e propôs que se casassem. "Meu coração levou uma punhalada. Ela respondeu: "Que pena, estou de casamento marcado". Não fui capaz de segurar as lágrimas, só consegui dizer que esperaria para fazê-la feliz, se mudasse de ideia." "E o que aconteceu?" "Nunca mais apareceu. Há mais de dois meses. Não sei onde mora nem onde trabalha. Acho que foi embora por medo de fraquejar." E acrescentou com ar pensativo, acariciando o pescoço: "De fato, eu fiquei muito bonito". AMANHÃ NA ILUSTRADA: Ferreira Gullar Texto Anterior: SP vê centena de obras de Keith Haring Próximo Texto: Teatro: Cia. dos Atores pode dar fim a espetáculos Índice |
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