São Paulo, Sábado, 31 de Julho de 1999
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A RESENHA DA SEMANA
Novo modelo latino

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

No início dos anos 70, quando os thrillers políticos de Costa-Gavras eram proibidos em países como o Brasil, o chileno Ariel Dorfman ficou conhecido como co-autor (ao lado de Armand Mattlelart) de uma pequena crítica do imperialismo cultural americano, "Para Ler o Pato Donald" (1971), adotada como bíblia nas escolas de comunicação.
Na época, não era raro acreditar na arte como forma de resistência e os cinéfilos mais radicais costumavam apontar nos filmes de Costa-Gavras uma contradição entre forma e conteúdo, o oportunismo de apelar às formas mais convencionais do cinema americano para narrar histórias que se pretendiam "politicamente revolucionárias".
Os que defendiam uma idéia mais ampla (e mais estética) de revolução, a utopia romântica de uma revolução pela arte (Godard), se mantinham em guerra contra os que se contentavam com o cinema como simples meio de comunicação de uma mensagem (Costa-Gavras).
Só por algum tipo de cegueira passaria pela cabeça de alguém alinhar o autor de "Para Ler o Pato Donald" com os radicais adeptos de uma utopia estética. Tudo na obra de Dorfman, culminando com o sucesso da peça "A Morte e a Donzela" (1991), o aproxima de uma idéia da arte como meio de transmissão de mensagens -e isso mesmo quando parece estar "inovando" na forma, "trabalhando a linguagem".
É o caso do romance "Konfidenz", de 95, que tenta seguir os rastros de glória de "A Morte e a Donzela", premiada em Londres e montada na Broadway com elenco cinematográfico, para terminar adaptada para o cinema por Roman Polanski, com Sigourney Weaver.
Assim como a peça, o romance de Dorfman também tem uma estrutura dramática que privilegia a intriga e as reviravoltas teatrais, uma estrutura feita de diálogos que expõem uma parábola política: a ambiguidade do poder se manifestando em relações pessoais, de dependência e de confiança, em manipulações em que não se sabe mais quem é o algoz e quem é a vítima.
Em "A Morte e a Donzela", uma ex-presa política, traumatizada e recolhida com o marido a uma casa de praia, passa de vítima a torturadora ao reconhecer no sujeito que agora vem bater à sua porta, por acaso, no meio da noite, pedindo ajuda porque um pneu furou, o homem que a havia torturado anos antes.
Em "Konfidenz", uma fotógrafa alemã chega a Paris meses antes da invasão nazista, em 1939, para se encontrar com o namorado, um resistente alemão refugiado na França. Ao entrar no quarto do hotel, recebe o telefonema de um estranho que lhe revela que o namorado corre perigo de vida. Entre desconfiança e sedução, os dois passam nove horas conversando ao telefone, até serem interrompidos pela polícia.
Ariel Dorfman, 57, nasceu na Argentina e é cidadão chileno, mas sua formação é americana, como fica claro em seu livro de memórias "Uma Vida em Trânsito". Em 1973, exilou-se nos Estados Unidos. Hoje é professor na prestigiosa Duke University e milita a favor dos direitos humanos. É interessante, a julgar pelo caso desse autor, notar que espécie de literatura latino-americana é possível hoje aos olhos de um mercado dominado pelo "modelo de cotas" americano.
Na contracapa da edição brasileira de "Konfidenz", Salman Rushdie diz que Dorfman é "uma das vozes mais importantes da América Latina". O romance latino-americano parece ter encontrado afinal uma imagem internacional para substituir o exotismo fácil e desgastado do realismo mágico que, aliás, o próprio Rushdie professa.
Os clichês políticos do continente servem agora de base para a busca de uma eficiência dramatúrgica em que a forma é uma fórmula de sobressaltos teatrais: o romance reduzido a mero roteiro de cinema.
É esse mesmo parâmetro literário, essa perspectiva da eficiência dramatúrgica, que permite, por exemplo, ao roteirista de Kubrick em "De Olhos Bem Fechados" afirmar, na maior cara-de-pau, que a pequena obra-prima de Arthur Schnitzler, "Traumnovelle" (1926), em que se baseou a adaptação do filme, é um livro "muito literário" e "pouco convincente", porque "não há muita progressão".
Perdeu-se a idéia da arte como resistência às regras, invenção de novos horizontes. Reduzida a meio e mensagem, a ela só resta se adaptar à norma de uma eficiência de comunicação.
"Konfidenz" é uma tentativa de cumprir as expectativas dos novos tempos. Mas o mais engraçado é que nem mesmo pelos critérios dessa eficiência dramatúrgica o romance consegue escapar ileso. Comparado a "A Morte e a Donzela", por exemplo, "Konfidenz" é, como poderia dizer o roteirista de Kubrick, e dessa vez com propriedade, "pouco convincente".


Avaliação:   


Livro: Konfidenz Autor: Ariel Dorfman Tradução: Marcos de Castro Lançamento: Record Quanto: R$ 20 (174 págs.)

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