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WALTER SALLES
Vai começar tudo de novo
Apertem o cinto. A CNN
-a MTV da notícia- vai nos bombardear com retrospectivas. Fotos inéditas, ainda mais trágicas, vão espocar em todos os cantos. Bruce Springsteen vai monopolizar as rádios. Comerciais "em homenagem" aos desaparecidos ocuparão a TV. George
Bush fará discursos lacrimejantes e justificará novos gastos militares. O Iraque que se cuide -o 11 de setembro vem aí.
William Burroughs dizia que o
nacionalismo exacerbado é como
um campo de concentração. Vamos ter em breve uma prova viva
desse estado de coisas. Interessante mesmo será comparar a cobertura norte-americana do evento
com a da TV Al Jazeera. O campo
e o contracampo, partes indissolúveis de uma mesma história.
Um longa-metragem com 11 pequenos filmes realizados por diretores de diversas latitudes do
mundo sobre o 11 de setembro vai
estrear nos próximos dias em festivais de cinema. Como várias outras pessoas, fui consultado sobre
a possibilidade de participar da
série, mas preferi declinar do convite por não saber como tratar de
um tema tão grave com tão pouco
distanciamento histórico. A solução talvez estivesse no tratamento
escolhido por Alejandro González
Iñárritu, o ótimo diretor de
"Amores Brutos": um filme sem
imagens. Onze minutos só de sons
dissonantes. Um filme feito de
perguntas sem respostas.
Mais surpreendentes, talvez, do
que raciocínios a posteriori são
aqueles possibilitados por artistas
que anteciparam a história. E nada mais impactante nesse sentido
do que os versos propostos pelo
extraordinário poeta que foi
W.H. Auden, intitulados "1º de
Setembro de 1939". O poema poderia ter sido escrito hoje. Fala de
arranha-céus e de deuses psicopatas, do obscurantismo conservador e da dor da perda. Eis algumas estrofes, (mal) traduzidas do
inglês:
"Sento num bar
Da rua 52
Amedrontado e sem rumo
Vendo a esperança expirar
Em meio a uma década desonesta.
Ondas de ódio e pavor
Planam acima das claras
E agora obscurecidas partes da
Terra,
Obcecando nossas vidas;
O indescritível odor da morte
Agride a noite de setembro.
Tudo que tenho é uma voz
Para desvendar a mentira escondida,
A mentira romântica no cérebro
Do sensual homem da rua
E a mentira da Autoridade
Cujos prédios imensos invadem o
céu;
O Estado inexiste,
E ninguém existe sozinho;
A fome não deixa escolha
Ao cidadão ou à polícia
Devemos amar ao outro ou morrer.
Indefeso no meio da noite,
Nosso mundo vive em estupor;
E, no entanto, surgindo em muitos lugares,
Irônicos pontos de luz
Brilham onde os justos
Trocam suas mensagens;
Possa eu, composto como eles
De Eros e de pó,
Tomado pela mesma
Negação e desespero,
Emitir uma chama assertiva".
O mais estranho, em uma obra
tão premonitória, foi o fato de
Auden ter eliminado esse poema
das últimas edições de sua obra.
Ao reler os versos, não concordou
com a frase "devemos amar ao
outro ou morrer". "Morreremos
de qualquer forma", pensou.
Mudou a frase para "devemos
amar um ao outro e morrer".
Também não gostou. Hoje, mais
de meio século depois de terem sido escritas, as palavras que Auden elegeu para falar da Segunda
Guerra parecem mais pertinentes
do que nunca. Como se, por um
estranho jogo de dados, o escritor
adquirisse sincronicidade com
um outro tempo, no qual não
mais vive, mas que ele descreve
como poucos.
A releitura do poema de Auden
sugere uma última pergunta: e se
esta não for uma obra de antecipação? E se os homens forem apenas animais sujeitos à repetição,
que cometem erros semelhantes
ao longo do tempo? E se "aqueles
que sofrem injustiças respondem
sempre com mais injustiças", como o próprio Auden propõe?
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