São Paulo, sábado, 31 de agosto de 2002

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WALTER SALLES

Vai começar tudo de novo

Apertem o cinto. A CNN -a MTV da notícia- vai nos bombardear com retrospectivas. Fotos inéditas, ainda mais trágicas, vão espocar em todos os cantos. Bruce Springsteen vai monopolizar as rádios. Comerciais "em homenagem" aos desaparecidos ocuparão a TV. George Bush fará discursos lacrimejantes e justificará novos gastos militares. O Iraque que se cuide -o 11 de setembro vem aí.
William Burroughs dizia que o nacionalismo exacerbado é como um campo de concentração. Vamos ter em breve uma prova viva desse estado de coisas. Interessante mesmo será comparar a cobertura norte-americana do evento com a da TV Al Jazeera. O campo e o contracampo, partes indissolúveis de uma mesma história.
Um longa-metragem com 11 pequenos filmes realizados por diretores de diversas latitudes do mundo sobre o 11 de setembro vai estrear nos próximos dias em festivais de cinema. Como várias outras pessoas, fui consultado sobre a possibilidade de participar da série, mas preferi declinar do convite por não saber como tratar de um tema tão grave com tão pouco distanciamento histórico. A solução talvez estivesse no tratamento escolhido por Alejandro González Iñárritu, o ótimo diretor de "Amores Brutos": um filme sem imagens. Onze minutos só de sons dissonantes. Um filme feito de perguntas sem respostas.
Mais surpreendentes, talvez, do que raciocínios a posteriori são aqueles possibilitados por artistas que anteciparam a história. E nada mais impactante nesse sentido do que os versos propostos pelo extraordinário poeta que foi W.H. Auden, intitulados "1º de Setembro de 1939". O poema poderia ter sido escrito hoje. Fala de arranha-céus e de deuses psicopatas, do obscurantismo conservador e da dor da perda. Eis algumas estrofes, (mal) traduzidas do inglês:

"Sento num bar
Da rua 52
Amedrontado e sem rumo
Vendo a esperança expirar
Em meio a uma década desonesta.

Ondas de ódio e pavor
Planam acima das claras
E agora obscurecidas partes da
Terra,


Obcecando nossas vidas;
O indescritível odor da morte
Agride a noite de setembro.

Tudo que tenho é uma voz
Para desvendar a mentira escondida,
A mentira romântica no cérebro


Do sensual homem da rua
E a mentira da Autoridade
Cujos prédios imensos invadem o
céu;

O Estado inexiste,
E ninguém existe sozinho;
A fome não deixa escolha
Ao cidadão ou à polícia
Devemos amar ao outro ou morrer.

Indefeso no meio da noite,
Nosso mundo vive em estupor;
E, no entanto, surgindo em muitos lugares,
Irônicos pontos de luz
Brilham onde os justos

Trocam suas mensagens;
Possa eu, composto como eles
De Eros e de pó,
Tomado pela mesma
Negação e desespero,
Emitir uma chama assertiva".

O mais estranho, em uma obra tão premonitória, foi o fato de Auden ter eliminado esse poema das últimas edições de sua obra. Ao reler os versos, não concordou com a frase "devemos amar ao outro ou morrer". "Morreremos de qualquer forma", pensou.
Mudou a frase para "devemos amar um ao outro e morrer". Também não gostou. Hoje, mais de meio século depois de terem sido escritas, as palavras que Auden elegeu para falar da Segunda Guerra parecem mais pertinentes do que nunca. Como se, por um estranho jogo de dados, o escritor adquirisse sincronicidade com um outro tempo, no qual não mais vive, mas que ele descreve como poucos.
A releitura do poema de Auden sugere uma última pergunta: e se esta não for uma obra de antecipação? E se os homens forem apenas animais sujeitos à repetição, que cometem erros semelhantes ao longo do tempo? E se "aqueles que sofrem injustiças respondem sempre com mais injustiças", como o próprio Auden propõe?



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