São Paulo, quinta-feira, 31 de agosto de 2006

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ARTIGO

Inovador, escritor egípcio foi o pai do romance árabe

PAULO DANIEL FARAH
ESPECIAL PARA A FOLHA

NO INÍCIO do romance "O Beco do Pilão", o velho poeta, que durante décadas recordara aos clientes do Café do Kircha as façanhas e os périplos de heróis árabes, é expulso do local para marcar a rejeição do passado e um ato de modernização: a instalação de um rádio. Tal como na ficção, Nagib Mahfuz, magistral literato, recitador, contador de histórias, deixa um mundo em que a imaginação faz falta, em que a literatura perde a voz.
Chamado por vezes de Dickens do Cairo, Mahfuz é considerado o pai do romance árabe e seu principal representante; moldou esse gênero literário e contribuiu para sua evolução depois de formar-se em filosofia, em 1934.
Em suas obras, Mahfuz recorre à história a partir da visão doméstica de um egípcio lúcido e utiliza diversas técnicas narrativas e inovações formais, sem preservar a imagem mítica que envolve o velho bairro cairota como a personificação da autenticidade egípcia.
Seus primeiros livros, publicados entre 1939 e 1944, seguem o modelo de romance histórico. Situam-se na época dos faraós e respondem ao nacionalismo egípcio exaltado por vários autores; a temática faraônica comporta um certo romantismo voltado à glorificação do Egito contemporâneo.
A partir de 1945, adotou outro tema: a descrição da vida cotidiana em bairros egípcios pobres ou burgueses que ele conhece bem. Nesses romances, o tema constante é o da inadequação entre o espaço social egípcio, com ruas de miséria e morte, e a vida "moderna". A extinção de um mundo tradicional e a escalada de uma juventude ávida por dinheiro e poder levam à constatação implícita de um fracasso.
Um pessimismo difuso, oposto ao otimismo tônico de Taha Hussayn, marca as obras realistas de Mahfuz. Sua expressão artística, a princípio neutra, adota progressivamente o vocabulário da angústia e do desespero. Ela se adapta aos tempos de crise e de mudanças sociais, à migração acelerada em direção às grandes cidades e às relações de desconfiança e cautela que opõem as pessoas a uma sociedade de aculturação.
Devido a isso, o espaço onde vivem as personagens adquire uma importância expressiva em sua obra. O simples deslocamento de um bairro a outro causa uma ruptura cultural.
A narração do cotidiano de egípcios que freqüentemente se tornam protótipos universais marca sua criação literária, que visava a questionamentos, não a respostas. Tudo isso ornado por uma prosa bem-feita e uma descrição sutil das ruas, casas, odores e ruídos deste Egito multitudinário.
O anúncio do Prêmio Nobel, em 1988, faz menção ao caráter realista da maioria de suas obras. Mahfuz atribui sua tradição realista a escritores como John Galsworthy (1867-1933), Aldous Huxley (189401963) e D. H. Lawrence (1885-1930). E elogiava Gustave Flaubert (1821-1880) e Henrie-Marie Beyle Stendhal (1783-1842).
Nagib (em árabe, nobre) Mahfuz (preservado, protegido por Deus) recebeu esse nome em homenagem ao obstetra que assistiu sua mãe. O nome religiosamente ambíguo (presente entre muçulmanos e cristãos) já anunciava o caráter multicultural de sua obra, na qual não há moral redentora.


PAULO DANIEL FARAH é professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

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