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ARTIGO
Inovador, escritor egípcio foi o pai do romance árabe
PAULO DANIEL FARAH
ESPECIAL PARA A FOLHA
NO INÍCIO do romance
"O Beco do Pilão", o
velho poeta, que durante décadas recordara aos
clientes do Café do Kircha as
façanhas e os périplos de heróis
árabes, é expulso do local para
marcar a rejeição do passado e
um ato de modernização: a instalação de um rádio. Tal como
na ficção, Nagib Mahfuz, magistral literato, recitador, contador de histórias, deixa um
mundo em que a imaginação
faz falta, em que a literatura
perde a voz.
Chamado por vezes de Dickens do Cairo, Mahfuz é considerado o pai do romance árabe
e seu principal representante;
moldou esse gênero literário e
contribuiu para sua evolução
depois de formar-se em filosofia, em 1934.
Em suas obras, Mahfuz recorre à história a partir da visão
doméstica de um egípcio lúcido
e utiliza diversas técnicas narrativas e inovações formais,
sem preservar a imagem mítica
que envolve o velho bairro cairota como a personificação da
autenticidade egípcia.
Seus primeiros livros, publicados entre 1939 e 1944, seguem o modelo de romance
histórico. Situam-se na época
dos faraós e respondem ao nacionalismo egípcio exaltado
por vários autores; a temática
faraônica comporta um certo
romantismo voltado à glorificação do Egito contemporâneo.
A partir de 1945, adotou outro tema: a descrição da vida cotidiana em bairros egípcios pobres ou burgueses que ele conhece bem. Nesses romances, o
tema constante é o da inadequação entre o espaço social
egípcio, com ruas de miséria e
morte, e a vida "moderna". A
extinção de um mundo tradicional e a escalada de uma juventude ávida por dinheiro e
poder levam à constatação implícita de um fracasso.
Um pessimismo difuso,
oposto ao otimismo tônico de
Taha Hussayn, marca as obras
realistas de Mahfuz. Sua expressão artística, a princípio
neutra, adota progressivamente o vocabulário da angústia e
do desespero. Ela se adapta aos
tempos de crise e de mudanças
sociais, à migração acelerada
em direção às grandes cidades e
às relações de desconfiança e
cautela que opõem as pessoas a
uma sociedade de aculturação.
Devido a isso, o espaço onde
vivem as personagens adquire
uma importância expressiva
em sua obra. O simples deslocamento de um bairro a outro
causa uma ruptura cultural.
A narração do cotidiano de
egípcios que freqüentemente
se tornam protótipos universais marca sua criação literária,
que visava a questionamentos,
não a respostas. Tudo isso ornado por uma prosa bem-feita
e uma descrição sutil das ruas,
casas, odores e ruídos deste
Egito multitudinário.
O anúncio do Prêmio Nobel,
em 1988, faz menção ao caráter
realista da maioria de suas
obras. Mahfuz atribui sua tradição realista a escritores como
John Galsworthy (1867-1933),
Aldous Huxley (189401963) e
D. H. Lawrence (1885-1930). E
elogiava Gustave Flaubert
(1821-1880) e Henrie-Marie
Beyle Stendhal (1783-1842).
Nagib (em árabe, nobre)
Mahfuz (preservado, protegido
por Deus) recebeu esse nome
em homenagem ao obstetra
que assistiu sua mãe. O nome
religiosamente ambíguo (presente entre muçulmanos e cristãos) já anunciava o caráter
multicultural de sua obra, na
qual não há moral redentora.
PAULO DANIEL FARAH é professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
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