São Paulo, terça-feira, 31 de outubro de 2006

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Os sem-tela

Sem contrato de distribuição, filmes brasileiros agradam em festivais, mas podem nunca estrear; diretor da Columbia propõe barreira às filmagens

Divulgação
O ator Rafael Raposo vive Noel Rosa e a atriz Camila Pitanga é a musa Ceci em "Noel - Poeta da Vila"


SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Um dos filmes preferidos do público da 30ª Mostra de Cinema de SP não tem garantia de estrear nos cinemas.
"Noel - Poeta da Vila", do brasileiro Ricardo Van Steen, está na lista de 14 finalistas -peneirados pelos espectadores da Mostra, entre 120 longas de novos diretores- ao troféu de melhor desta edição. O vencedor sai na próxima quinta.
"Noel - Poeta da Vila" não tem contrato com nenhuma distribuidora, o tipo de empresa responsável pelo lançamento dos filmes nos cinemas e também nos ramos auxiliares do mercado exibidor, como DVD e TV. Pode, portanto, ficar inacessível ao grande público.
O filme de Van Steen não é exceção no cenário da indústria cinematográfica brasileira. Entre os 143 títulos que estão atualmente inéditos ou nas fases de produção e finalização no país, apenas 43 têm contrato de distribuição e, por conseqüência, estréia assegurada, segundo dados da Ancine (Agência Nacional do Cinema).
A representação nacional na Mostra de São Paulo confirma e ilustra o fenômeno. Dos 16 filmes de ficção da disputa nacional, quatro não têm distribuidor (leia lista nesta página). Na categoria documental os números são mais expressivos. Pelo menos sete dos 15 documentários selecionados pelo festival paulista não têm (ainda) perspectiva de lançamento.
Para o diretor da distribuidora Columbia, Rodrigo Saturnino Braga, essa é uma distorção do mercado brasileiro, que deve ser corrigida. "Acho que um roteiro não deveria entrar em filmagem no Brasil sem ter uma distribuidora", afirma.
Saturnino Braga parte de uma análise "da perspectiva industrial", na qual lhe parece óbvia a inconveniência de investir uma soma de dinheiro (público, na maioria das vezes, já que os filmes no Brasil são realizados com receitas de renúncia fiscal) na produção de um produto que não tem garantia de ser comercializado.

Polêmica
Mas, como o cinema tem a dupla face de arte industrial, a adequação proposta pelo diretor da Columbia esbarra no domínio da liberdade de criação e causa polêmica até entre seus pares distribuidores. "Concordo com Rodrigo que, devido à facilidade de captação de dinheiro incentivado [pelas leis de renúncia fiscal], cada vez se fazem mais filmes sem preocupações de que eles tenham acolhida tanto por qualquer distribuidora quanto pelo público", diz Jorge Peregrino, vice-presidente para América Latina e Caribe da Universal Pictures, outra gigante da distribuição.
Mas Peregrino pondera: "Não concordo em coibir que filmes sem distribuidor desde o início sejam produzidos, até porque seria um crime contra a liberdade de expressão".
Mesmo se a barreira atingisse apenas os filmes beneficiários de incentivo fiscal, o executivo da Universal acha que haveria um efeito adverso no mercado: "Onde ficaria o primeiro filme e a "descoberta" de novos cineastas, cada vez mais necessária?".
O distribuidor Bruno Wainer, da Downtown, classificada entre as distribuidoras brasileiras "independentes" (em oposição às filiais das "majors" norte-americanas), tem opinião semelhante à de Peregrino. "Não acho que tenhamos que fechar o mercado para que se produzam só filmes que tenham compromisso com distribuidor", afirma.
Por outro lado, Wainer está de acordo também com Saturnino Braga: "Concordo com ele que há muito dinheiro disponível para fazer filmes que não têm compromisso com nenhum tipo de mercado, seja autoral, seja comercial. E acho que deveria diminuir o número desses filmes que nascem de geração espontânea".
Presidente da Ancine, Gustavo Dahl diz que a idéia de Saturnino Braga "faz sentido, do ponto de vista da racionalidade de utilização dos recursos, mas isso acabaria com a espontaneidade do impulso de produção".
Dahl cita outro fator de distorção no mercado brasileiro de cinema, que, na sua opinião, colabora para aumentar o gargalo que deixa filmes prontos longe dos cinemas: "O número de salas subdimensionado para o tamanho do país [2.900] desestimula a constituição de distribuidores brasileiros. Objetivamente, não há espaço físico [para lançar todos os filmes produzidos], e a competição fica exacerbada", afirma.
Peregrino, por sua vez, não debita o problema nem ao setor da distribuição nem ao da exibição. "Entendo que invocar o famoso "nó" da distribuição, como também se invoca o da exibição, é apenas uma desculpa para não admitir que existem filmes com potencial e filmes sem potencial. Enfim, produtos ruins e produtos bons."
Mas como explicar então que filmes ameaçados de permanecer na prateleira alcancem sucesso em festivais? Jorge Durán, autor de "Proibido Proibir", longa sobre a juventude brasileira que venceu neste ano em Biarritz, entrou no Festival do Rio e na Mostra de SP e permanece sem distribuidor, responde com uma analogia musical: "Você não gosta de mim, mas sua filha gosta".


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