|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Saramago usa elefante contra "inimigos"
O escritor português ataca igreja e capitalismo em nova obra, baseada em fato verídico, e defende reforma ortográfica
"Já vínhamos avisando que
algo assim [como a crise
global] ia acontecer. E
agora o que vemos?
Que aconteceu mesmo!"
DA ENVIADA A LISBOA
Saramago ainda se recupera
de uma grave doença respiratória, que quase o levou embora
no ano passado. Na dedicatória
de "A Viagem do Elefante", ele
homenageia quem parece tê-lo
salvo do pior: "A Pilar, que não
deixou que eu morresse".
Pilar é a jornalista espanhola
com quem está casado há mais
de duas décadas. Mais jovem do
que ele 28 anos, é ela quem organiza seus dias, vigia o que sai
na imprensa e cada passo de
lançamentos e entrevistas do
marido mundo afora.
Mesmo fragilizado, ele continua com a agenda cheia. Fala,
viaja e mantém um blog
(caderno.josesaramago.org).
O casal passa temporadas em
Lisboa, mas mora mesmo na
ilha de Lanzarote, no arquipélago das Canárias, na Espanha.
"A Viagem do Elefante" parte de um episódio verídico e
inusitado. Em 1551, o rei português dom João 3º deu de presente ao arquiduque da Áustria
um elefante indiano.
Uma caravana, que literalmente caminhava a passo de
elefante, atravessou então boa
parte da Europa para entregar
o animal a seu destino, causando sensação nos povoados ao
longo do caminho.
Afinal, tratava-se de um animal que as pessoas, na época,
sequer sabiam como era.
Na comitiva, iam um comandante, um tratador de elefantes, soldados e bois. Homens e
animais se observam o tempo
todo ao longo da narrativa.
"Quis usar o elefante como metáfora da vida humana. Os homens não entendiam bem as
reações e os sentimentos do
animal, mas também talvez
porque não entendessem os
seus mesmos", diz o escritor.
Partindo de um exemplo da
realidade histórica, Saramago
aproxima-se do tipo de romances que escreveu nos anos 80,
como "O Ano da Morte de Ricardo Reis" ou "História do
Cerco de Lisboa".
Por outro lado, o livro é também uma grande fábula, como
os que vieram a partir da década seguinte, como "As Intermitências da Morte", "A Caverna"
ou o já citado "Ensaio sobre a
Cegueira".
Igreja e capital
A obra traz provocações a
seus inimigos de costume. Entre eles, a igreja. Num dado momento, a população de uma aldeia alerta o cura local de que
algumas pessoas andavam dizendo que o elefante que por ali
passava era uma representação
de Deus, segundo os indianos.
O padre resolve, então, exorcizar o elefante.
"A igreja, que, para efeitos
propagandísticos, cultiva a modéstia e a humildade, nos comportamentos age com um orgulho sem limite. Por isso criei esse padre, que quer exorcizar
um elefante, como se fosse possível imaginar o que vai ali pela
cabeça do bicho e, por analogia,
o que vai pela cabeça de um homem comum."
Já contra o capital, Saramago
hoje posa com segurança devido ao cenário de crise global.
"Algumas pessoas, entre as
quais me incluo, já vínhamos
avisando que algo assim ia
acontecer. E agora o que vemos? Que aconteceu mesmo!"
A esquerda, porém, para ele,
não tem como dar respostas à
tragédia. "Não dá nem para dizer que há em processo a elaboração de uma alternativa."
Ortografia
Apesar de não querer saber
de mudar seu modo de escrever, Saramago é um defensor
do acordo ortográfico firmado
entre países da Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e que começará a entrar em vigor no Brasil em janeiro do ano que vem.
"Ele é necessário, mais para
nós do que para vocês. O Brasil
é quem lidera o ensino e a divulgação da língua pelo mundo.
Temos de nos adaptar, para o
nosso próprio bem, para a sobrevivência da nossa cultura."
As novas regras vão afetar
principalmente o uso dos acentos agudo e circunflexo, do trema e do hífen. Em Portugal, onde haverá mudanças maiores,
houve resistência por parte de
intelectuais. "Tenho certeza de
que com o tempo verão que a
mudança terá sido benéfica."
Ele mesmo, porém, diz que
não vai mudar sua escrita. "Os
que forem revisar meus textos
que o façam. Podem republicar
meus livros dentro das novas
regras, mas não serei eu a
aprender, a essa altura da vida,
um outro jeito de escrever."
(SYLVIA COLOMBO)
Texto Anterior: No passo do elefante Próximo Texto: Frase Índice
|