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OPINIÃO
De monstro, Maria de Fátima vira símbolo positivo
TALES A. M. AB'SÁBER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Gilberto Braga se inscreveu profundamente na tradição narrativa brasileira sobre
a estranheza a ser nomeada
de nossa sociedade incivil e
incompleta, se nos basearmos por parâmetros modernos para as coisas públicas.
Trabalhando com formas
populares de cultura média
clássicas, como o folhetim e o
melodrama, de fato explorou
as possibilidades do gênero
da telenovela, do qual é o grande inventor moderno.
Discípulo de Janete Clair,
seus primeiros trabalhos foram adaptações de "A Escrava Isaura", de Bernardo Guimarães; "Helena", de Machado de Assis; e "Senhora", de José de Alencar.
Pode-se intuir aí uma espécie de formação. A matéria social brasileira e sua possibilidade de formatação ficcional está sendo perscrutada em profundidade. Saberá
operar de modo raro o grande poder adquirido no sistema da indústria televisiva a
partir de "A Escrava Isaura".
Não será por acaso que ele
dará o próprio salto mortal
-mais ou menos como ocorreu com Machado de Assis-,
na esfera da cultura de massas de "Vale Tudo" vai passar
a olhar o Brasil do ponto de
vista radical da elite beneficiária da vida nacional então
estagnada, que operava com
liberdade cínica e violência
sistemática a sua relação com uma classe média ambígua sobre a ordem de exploração e descompromisso do
grande dinheiro por aqui.
PERSONAGEM
A novela brasileira finalmente estava à altura da história. Apanhou no ar, no fim
dos anos, como o país e os
seus senhores se preparavam
para substituir o poder autoritário da ditadura militar, de
formatação antiga, pelo neopoder desrecalcado do dinheiro, operando nova clivagem entre espertos e perdedores, agora de roupagem
neoliberal, que só confirmava o Brasil como para-nação, inconsistente como projeto, para não dizer inviável.
Gilberto Braga é o único
dramaturgo da TV brasileira
que pode ter no Brasil o seu
personagem, e conseguiu se
sair bem na empreitada limite, ao observar a vida do ponto de vista do todo, e não do
fragmento mítico ou jocoso,
como a ideologia pós-moderna de então propunha.
A sua enésima redescoberta atual, que confirma o poder de fogo de uma forma
que se aproxima da arte, porta novas surpresas: hoje, em
um contexto histórico muito
diferente, são jovens gays
que se interessam pelo caráter a-moral, politicamente incorreto e de tintas fortes das
divas trashs e más, mas socialmente muito bem determinadas de "Vale Tudo".
Se, quando vimos a novela
pela primeira vez, Maria de
Fátima era um monstro de arrivismo, cinismo e maquiavelismo pragmático, que
rompia com o circuito melodramático e decoroso de sua
mãe e classe para ter acesso
ao grand monde do dinheiro,
hoje é um símbolo positivo
para jovens que, na ausência
de esperança maior na cultura e na política, e de modo
irônico, em um novo humor
maledicente e camp, simplesmente assumem, de modo fantástico, como certa vez
ouvi de um amigo: "Eu quero ser a Maria de Fátima".
Ainda nos resta aguardar a redescoberta da segunda obra prima de Braga, "O Dono do Mundo".
TALES A. M. AB'SÁBER é professor de
filosofia da psicanálise na Unifesp
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