São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2010

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OPINIÃO

De monstro, Maria de Fátima vira símbolo positivo

TALES A. M. AB'SÁBER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Gilberto Braga se inscreveu profundamente na tradição narrativa brasileira sobre a estranheza a ser nomeada de nossa sociedade incivil e incompleta, se nos basearmos por parâmetros modernos para as coisas públicas.
Trabalhando com formas populares de cultura média clássicas, como o folhetim e o melodrama, de fato explorou as possibilidades do gênero da telenovela, do qual é o grande inventor moderno.
Discípulo de Janete Clair, seus primeiros trabalhos foram adaptações de "A Escrava Isaura", de Bernardo Guimarães; "Helena", de Machado de Assis; e "Senhora", de José de Alencar.
Pode-se intuir aí uma espécie de formação. A matéria social brasileira e sua possibilidade de formatação ficcional está sendo perscrutada em profundidade. Saberá operar de modo raro o grande poder adquirido no sistema da indústria televisiva a partir de "A Escrava Isaura".
Não será por acaso que ele dará o próprio salto mortal -mais ou menos como ocorreu com Machado de Assis-, na esfera da cultura de massas de "Vale Tudo" vai passar a olhar o Brasil do ponto de vista radical da elite beneficiária da vida nacional então estagnada, que operava com liberdade cínica e violência sistemática a sua relação com uma classe média ambígua sobre a ordem de exploração e descompromisso do grande dinheiro por aqui.

PERSONAGEM
A novela brasileira finalmente estava à altura da história. Apanhou no ar, no fim dos anos, como o país e os seus senhores se preparavam para substituir o poder autoritário da ditadura militar, de formatação antiga, pelo neopoder desrecalcado do dinheiro, operando nova clivagem entre espertos e perdedores, agora de roupagem neoliberal, que só confirmava o Brasil como para-nação, inconsistente como projeto, para não dizer inviável.
Gilberto Braga é o único dramaturgo da TV brasileira que pode ter no Brasil o seu personagem, e conseguiu se sair bem na empreitada limite, ao observar a vida do ponto de vista do todo, e não do fragmento mítico ou jocoso, como a ideologia pós-moderna de então propunha.
A sua enésima redescoberta atual, que confirma o poder de fogo de uma forma que se aproxima da arte, porta novas surpresas: hoje, em um contexto histórico muito diferente, são jovens gays que se interessam pelo caráter a-moral, politicamente incorreto e de tintas fortes das divas trashs e más, mas socialmente muito bem determinadas de "Vale Tudo".
Se, quando vimos a novela pela primeira vez, Maria de Fátima era um monstro de arrivismo, cinismo e maquiavelismo pragmático, que rompia com o circuito melodramático e decoroso de sua mãe e classe para ter acesso ao grand monde do dinheiro, hoje é um símbolo positivo para jovens que, na ausência de esperança maior na cultura e na política, e de modo irônico, em um novo humor maledicente e camp, simplesmente assumem, de modo fantástico, como certa vez ouvi de um amigo: "Eu quero ser a Maria de Fátima".
Ainda nos resta aguardar a redescoberta da segunda obra prima de Braga, "O Dono do Mundo".


TALES A. M. AB'SÁBER é professor de filosofia da psicanálise na Unifesp



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