São Paulo, sexta-feira, 31 de dezembro de 2004

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CRÍTICA

Furtado funde investigação policial e despertar erótico

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Se um filme como "Olga" leva para a tela grande o que a TV tem de pior -a simplificação maniqueísta da história e dos personagens, a ênfase melodramática, a redundância expositiva-, o cinema de Jorge Furtado mostra que o diálogo entre os dois veículos pode ser muito mais proveitoso.
Em "Meu Tio Matou um Cara" reencontramos a agilidade narrativa, o naturalismo da dramaturgia e a comunicação direta com o público que Furtado exercitou em seu trabalho como roteirista e diretor na Globo. Mas quem conhece a obra do cineasta, de "Ilha das Flores" a "O Homem que Copiava", sabe que ele não é um mero contador de histórias.
Com um uso esperto da locução em "off" em contraponto às imagens (e não em redundância com elas), lançando mão do flashback e da repetição para problematizar o que está sendo exposto, Furtado é daqueles ficcionistas modernos que, ao narrar, questionam a própria narração.
Em "Meu Tio Matou um Cara" esse questionamento se dá sobretudo na contraposição entre o que relata o tio supostamente assassino (o ótimo Lázaro Ramos), e o que vai deduzindo seu sobrinho Duca (o mais que ótimo Darlan Cunha). Mas há, claro, outras narrativas submetidas à crítica: a da namorada do tio, a do melhor amigo de Duca etc. Todas as histórias são suspeitas em "Meu Tio Matou um Cara".
É possível ver o novo longa de Furtado como uma síntese entre os dois anteriores, fundindo o tema do primeiro (as aventuras e descobertas da adolescência) com a forma do segundo (a construção descontínua e, em certa medida, conceitual).
É um filme que deve atingir em cheio o público, sobretudo o jovem, por desenvolver de modo divertido um tópico que já era caro a Freud e que Hitchcock soube explorar muito bem: a analogia entre a investigação policial e a aventura erótico-afetiva.
Ao mesmo tempo em que Duca e sua amiga Isa (Sophia Reis) investigam as pistas do crime, vão descobrindo também seus próprios afetos e pulsões.
Dois momentos são particularmente inspirados no que diz respeito à reflexão sobre a linguagem ficcional e a representação da realidade.
No primeiro deles, Duca, ao repassar mentalmente o suposto crime do tio, imagina aquela clássica fila de suspeitos para identificação na delegacia.
À medida que seu raciocínio sobre o caso evolui, o assassino identificado vai mudando, até que, numa fusão entre o caso policial e os temores íntimos do garoto, quem fica no centro da fila, apontado por todos os dedos, é o casal Duca-Isa.
Mais adiante, outro achado é a seqüência de fotos feitas por um detetive particular mostrando uma suposta traição da amante do tio (Deborah Secco) com um rapaz. Modificada a ordem das fotos, a série "prova" a inocência da moça. Não pode haver ilustração mais clara sobre o papel essencial da montagem no faz-de-conta do cinema.
Com tantos elogios, não estará faltando uma estrela na avaliação aqui embaixo? É que, de Jorge Furtado, sempre se pode esperar um pouco mais.


Meu Tio Matou um Cara
   
Direção: Jorge Furtado
Produção: Brasil, 2004
Com: Darlan Cunha, Deborah Secco, Lázaro Ramos
Quando: a partir de hoje nos cines Central Plaza, Bristol e circuito; amanhã nos cines Espaço Unibanco, Iguatemi e circuito



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