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Crítica história

Schama une rigor a narrativa palatável

'Travessias Difíceis' lida com dilemas morais à época da abolição da escravatura na Inglaterra

MANOLO FLORENTINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Poucos livros de história conseguem unir, hoje, o rigor próprio do ofício a uma narrativa palatável.

O bicentenário da abolição do tráfico britânico ensejou o lançamento de um, "Travessias Difíceis", de Simon Schama, de cujas 500 páginas emergem sobretudo dilemas morais encarnados em trajetórias individuais.

Homens livres como Granville Sharp, Wiliam Wilberforce, os irmãos Clarkson e escravos como Thomas Peters e Catherine Bartley surgem enlaçados pela conjuntura mental da segunda metade do século 18, a transformar em sistêmicos seus atos e convicções.

Desde os anos 1970, o historiador Roger Anstey demonstrara que a opinião pública capitaneada pelos puritanos fora o motor da abolição do tráfico britânico. A novidade do trabalho de Schama reside na estratégia assumida pelos abolicionistas.

A mutação da escravidão em pecado fundou-se inicialmente na recuperação da antiga noção jurídica (de 1569), segundo a qual "a Inglaterra tinha um ar puro demais para ser respirado por escravos". Aos poucos, os tribunais colocaram sob a proteção da Coroa os escravos que pisavam em solo inglês.

Atravessemos o Atlântico, e um novo drama se desenha. Atendendo à promessa de liberdade em nome do rei, milhares de cativos alistavam-se nas hostes inglesas durante a Guerra da Independência dos EUA (1775-1783).

Cerca de 25 mil negros, um quarto e um terço respectivamente da população escrava de Carolina do Sul e Geórgia, fugiram das fazendas. Ao fim do conflito, derrotados, muitos migraram para o Canadá.

Regressemos à Inglaterra, e as novas convicções são mais uma vez testadas pela vida miserável dos negros e pelo preconceito -eram mal vistos intercursos sexuais entre eles e pobres brancas.

Mas a empatia humana à qual Schama não se refere, aquela que uniu psicologicamente os ingleses no maior movimento de opinião pública jamais visto no Ocidente, advinha da semelhança entre a brutalidade com que eles mesmos eram sequestrados para servir à Royal Navy e as condições em que viviam os escravos das colônias.

Sequestros que aumentavam em proporção direta da necessidade da marinha real britânica em manter o império, como explica Adam Hochschild em outro clássico, "Enterrem as Correntes".

Foi quando, pela primeira vez, pensou-se na Serra Leoa, na África, como uma colônia de negros livres.

"FRANKPLEDGE"

Em 1787, 61 famílias que habitavam os guetos ingleses retornaram à África, afiançadas pela garantia de acesso à terra sob o antigo sistema jurídico do "frankpledge" - uma unidade primária de dez famílias ("tithing") que, combinando múltiplos de dez, formariam um "hundrede".

Cada "tithing" elegeria um "tithingman", e dez deles escolheriam um "hundredor".

A este grupo, minguado pela mortalidade, logo se uniriam os milhares de negros legalistas alistados ao Exército britânico derrotado e emigrados para o Canadá.

Da aventura, John Clarkson manteve um escrupuloso diário. Claro, o sonho do "frankpledge" fez água, não sem antes ensejar o reencontro de parentes e, pela primeira vez, o reconhecimento do voto feminino -as mulheres constituíam um terço dos chefes de família.

O aparato jurídico se africanizou ao sabor de antigos códigos de alianças matrimoniais. Mas o fundamental vicejou e, em 1792, Freetown -a capital de Serra Leoa- era uma verdadeira comunidade formada por afro-americanos britânicos livres.

Por ocasião do veto do Parlamento ao tráfico, em 1807, previa-se que os africanos resgatados aos negreiros seriam obrigados a ir para Serra Leoa, sob proteção direta da Coroa britânica.

Estavam dadas as condições para a definitiva abolição da escravatura no Império Britânico em 1834. Projeto tão eficiente se repetiria apenas um século depois, durante a Segunda Guerra Mundial, capitaneado por William Leonard Spencer Churchill.

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