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Opinião

João Gilberto abre o mundo de afetos com a voz

Chamar o cantor de 'complicado' e 'personalista' é resquício de uma antiga visão da bossa nova como 'reacionária'

Fazem caricatura da postura de João Gilberto, mas ele nunca deixou de ser aquele que quer cantar o que ama

Tuca Vieira/Folhapress
João Gilberto se apresenta com banquinho e violão no auditório do ibirapuera em SP
João Gilberto se apresenta com banquinho e violão no auditório do ibirapuera em SP

MIRIAM CHNAIDERMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Eram os anos 60. A avenida Paulista ficava forrada de flores amarelas que caíam das árvores de seus casarões. Naquela paisagem, a voz de João Gilberto soava como um trovão dissonante.

Aqueles sons estranhos não se pareciam com nada conhecido na nossa música.

Sons de jazz, em um samba americanizado? Em uma delicadeza ímpar, o baiano João Gilberto parecia estar cantando unicamente para aquele que o escutava.

Nosso "um cantinho, um violão, esse amor e uma canção", nosso "o pato", que queria cantar alegremente, foram pelo mundo afora.

Naquele momento, aqui, a bossa nova era considerada reacionária, individualista, burguesa. Antes da briga entre a música engajada e o tropicalismo houve outra bobagem, que foi contrapor o samba de raiz à bossa nova.

Parece que tudo isso perdura. O cancelamento recente do show de João Gilberto volta a colocá-lo no rol dos "megastars" complicados e personalistas.

Resquício daquela antiga visão acadêmica que, por meio da análise das letras da bossa nova, apontava um intimismo burguês reacionário.

João Gilberto sempre foi "um cantinho, um violão". Nos teatros municipais do mundo todo, em pleno Carnegie Hall, cantando para multidões, João Gilberto sempre reclamou de falhas técnicas, pois sempre quis "um cantinho e um violão".

Tem fama de ser intransigente, genioso. É sempre temido em suas atitudes.

Fazem caricatura de sua postura. O fato é que João Gilberto nunca deixou de ser aquele baiano que saiu de

Juazeiro e que quer cantar aquilo que ama.

Sua obra é absolutamente coerente com sua proposta inicial, quando tocou o violão da música "Chega da Saudade" para o disco pioneiro "Canção do Amor Demais" (1958), em que Elizete Cardoso (1920-1990) canta as composições de Vinicius e Jobim.

O violão deixou de ser um mero acompanhamento nas músicas. As letras tornam-se falas de intimidade.

Há um enlevo, um prazer no puro som do "bim, bom": "É só isso o meu baião, e não tem mais nada não, o meu coração pediu assim, só".

Um solitário afirmando seu jeito de ser entre o baião e o coração. Seus silêncios e respiros recriam nosso mundo sonoro. Ele adora concertar o belo, como costuma dizer.

João Gilberto só grava depois que atinge a perfeição total nos seus acordes dissonantes. Tem sempre uma vogal a ser reinventada para dar conta do que quer cantar.

SEM ESQUEMA

Como manter "um cantinho, um violão" no esquema dos shows de hoje, quando o telão substituiu o olhar direto, onde o "show business" determina o que criar e como cativar o público, onde fica difícil manter qualquer singularidade que não passe pelo que a massa determina e compra?

João Gilberto parece não se adaptar ao mundo de hoje. Continua tímido, atrapalhado, lutando para poder continuar sendo o que é.

Se isso o folcloriza, se isso o torna "estranho", se isso horroriza sua vizinhança (dizem até que um gato seu chegou a se suicidar), isso não tem nada a ver com a grandeza de sua criação.

Como inventor que é não se subordina às pressões todas, ainda que isso o leve à solidão. Psicopatologizar sua postura é não poder se defrontar com a peculiaridade do que inventou.

Só nos resta a gratidão pelo que ele continua a nos proporcionar. Com sua doce voz, ele nos instrumenta para o mundo dos afetos. Algo que, em nosso cotidiano, está cada vez mais em desuso.

MIRIAM CHNAIDERMAN é psicanalista, documentarista e ensaísta

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