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Crítica História

Biografia familiar de ceramista inglês esbarra em figuras como Renoir e Proust

FLÁVIO MOURA
ESPECIAL PARA A FOLHA

À primeira vista, a sinopse assusta: um ceramista que herda uma coleção de miniaturas japonesas resolve contar como os objetos chegaram a suas mãos por meio da história da própria família.

O cheiro de autocomplacência, cafonice e hagiografia familiar se faz sentir de longe. A capa também não ajuda: um coelhinho de marfim com os olhos brilhantes sobre um fundo que não faria feio como cenário de um programa de calouros.

Mas "A Lebre com os Olhos de Âmbar" resiste a essa impressão inicial. E já nas primeiras páginas lá estamos nós, querendo saber o que são exatamente os netsuquês (as tais miniaturas japonesas) e interessados no destino da família do autor, o ceramista inglês Edmund De Waal.

São duas razões para isso.

A primeira é que a família de fato rende. Seus antepassados, os Ephrussi, foram os maiores exportadores de trigo da Europa.

Charles, o tio-bisavô que comprou a coleção de um antiquário em Paris, era um mecenas das artes no século 19.

Financiou trabalhos de Manet, Degas e Renoir. Escrevia ensaios sobre o tema e teve como secretário um jovem de modos afetados chamado Marcel Proust.

Por meio da história da compra das miniaturas, temos acesso ao japonismo que tomou conta da França em fins do século 19 -e, por essa via, um recorte sobre a pintura em Paris no momento em que o impressionismo ensaiava os primeiros passos.

A morada seguinte da coleção abre a porta para outro cenário de interesse, a Viena da virada para o século 20.

As miniaturas são enviadas de presente de casamento a um primo de Charles e passam a habitar o Palais Ephrussi.

O casarão, parte do projeto original da Ringstrasse -um marco da modernização da cidade-, é palco de um desfile minucioso dos códigos de conduta da aristocracia vienense.

Pelo poderio crescente da família, composta na maior parte de banqueiros judeus, se desenha também um painel dos primórdios do antissemitismo na Europa.

PRECISÃO DOCUMENTAL

A segunda razão para ler o livro tem a ver como o modo escolhido para narrar.

De Waal puxa o leitor pela mão ao explicitar as dificuldades da pesquisa.

O escritor se dedica à própria história com minúcia de erudito -e recria os detalhes daquela época com uma precisão documental que não fica a dever aos bons historiadores do período.

O que parecia um truque para conquistar empatia do leitor -as miniaturas japonesas- vira um fio condutor muito bem sacado e de charme descritivo: o ceramista consegue indicar sutilezas nas propriedades táteis dos objetos, esculpidos em madeira ou marfim, sem cair na pieguice.

No limiar da Segunda Guerra, a família é destruída pelos nazistas, que tomam conta do casarão em Viena.

Poupada por não ser judia, a governanta da casa consegue preservar as miniaturas, uma a uma, escondendo-as dos nazistas em seu próprio colchão.

Nesse lance, os micro objetos se conectam com a grande história e revelam o acerto desse ótimo livro de estreia do autor inglês.

FLÁVIO MOURA é jornalista e doutor em sociologia pela USP

A LEBRE COM OLHOS DE ÂMBAR

AUTOR Edmund de Waal
EDITORA Intrínseca
TRADUÇÃO Alexandre Barbosa
QUANTO R$ 29,90 (318 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo

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