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Álvaro Pereira Júnior

Os beiços de Lana

Lana sofre de alguns "problemas". Nasceu rica, é branca, linda, curvilínea e francamente hétero

Um espectro ronda o universo musical: o espectro de Lana Del Rey. Deusa ou diaba; futuro da música ou pura farsa; pessoa ou personagem; artefato ou "real deal"; tempestade hormonal ou efígie gelada. Dessa cantora americana diz-se tudo, e sempre intensamente.

Lana, 25 anos, lábios de negra em um rosto de branca, é um furacão. Atingiu força máxima esta semana, quando, depois de longa espera, saiu nos EUA e na Europa seu primeiro álbum, "Born to Die".

É a primeira incursão de Lana no que se pode chamar de "mundo real". Até agora, era um fenômeno quase exclusivo de internet. Com todas as (poucas) vantagens e (muitos) dissabores que essa condição acarreta.

Lana foi descoberta no YouTube, em agosto de 2011, por algum desses blogs desesperados pela última novidade. A canção "Video Games" era melancólica, linda. Trip hop orquestral, uma daquelas músicas "que surgem de repente em nossa vida, e a definem por um momento", como dizia o sociólogo britânico Simon Frith.

No clipe, visto quase 25 milhões de vezes, Lana aparecia pouco. A maioria das imagens parecia extraída de vídeos caseiros, Califórnia anos 70 (entremeadas com cenas atuais da atriz Paz de la Huerta caindo de bêbada -a conexão Paz/Lana permanece um mistério).

Com a autorreferência e velocidade características da web, Lana virou um fenômeno on-line. Dispondo de poucas informações, os observadores foram construindo um retrato idealizado da cantora, reflexo mais do que os blogueiros queriam que ela fosse do que ela era de fato. Pintou-se uma "femme auteur" solitária, que fazia as próprias músicas e dirigia os próprios clipes, vinda do nada, cheia de angústia e credibilidade "indie".

Mas a internet não perdoa. Depois de alguns meses, começou uma reação contrária, também no pântano obsessivo dos blogs.

As supostas qualidades de Lana foram sendo derrubadas. Ela seria apenas produto de uma gigantesca conspiração, montada para projetar uma artista medíocre ao sucesso.

Lana posa de Nancy Sinatra "gangsta"? Mentira, é rica, filha de um financista. E esse nome, Lana Del Rey? Falso, o verdadeiro é Lizzy Grant, Lana não passa de personagem. Os lábios fartos? Implantes -em um vídeo de 2008, ainda chamada Lizzy, aparecia com boca "normal".

Uma comparação: demorou 18 anos para que se "desmascarasse" a banda mais abertamente política da história do rock, o Clash.

O primeiro álbum desses porta-vozes punk do proletariado é de 1977. E só em 1995 um livro, "Last Gang in Town - The Story and Myth of the Clash", mostrou que de proletários eles não tinham nada. O líder, Joe Strummer, era, na verdade, filho de um funcionário da diplomacia britânica.

No caso de Lana, o processo de endeusamento/evisceração não durou mais que uns poucos meses... E o pior ainda estava por vir.

No dia 14 de janeiro passado, ela foi escalada para o "Saturday Night Live", o programa humorístico mais tradicional da TV americana -que sempre tem uma atração musical e, como o nome diz, é ao vivo. Em sua estreia para o grande público dos EUA, Lana estava apavorada, voz trêmula. Fez uma apresentação mediana, como tantas no SNL.

Mas a reação na web foi brutal: fracasso, farsa, vergonha, inútil que só canta em estúdio. Por sua "inautenticidade", Lana deveria ser banida do planeta como, pelo mesmo motivo, os poetas seriam expulsos da república idealizada de Platão.

Alguns analistas, como Sasha Frere-Jones, da "New Yorker", opinam que a cantora é vítima de machismo: nunca um artista masculino seria alvo de tantas dúvidas sobre seu real talento. Frere-Jones já a assistiu em um clube. Considerou timbre e afinação "ótimos".

Arrisco, também, que a Lana sofre de alguns "problemas". Nasceu rica, é branca, linda, opulenta/curvilínea, e, ao menos em sua persona artística, francamente hétero. Não cai bem na arena "indie", para onde foi arrastada.

Se Lana fosse simplesmente pop, como Katy Perry ou Rihanna, o público estaria se lixando para autenticidade. Mas o universo "indie" é solapado por regras e patrulhas.

Agora, o melhor: enquanto a internet se empenha em massacrá-la, o disco de Lana vende como água. Nesta semana, liderou o iTunes, a principal loja de música on-line, em 11 países. Mais uma vez, o mundo de verdade confronta a web. É a vingança de Lana Del Rey.

cby2k@uol.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Ferreira Gullar

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