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Crítica Romance Estreia de Perec ri do fascínio exercido pelo consumismo 'As Coisas', de 1965, narra história de casal açoitado pelo apetite de comprar NELSON DE OLIVEIRAESPECIAL PARA A FOLHA Para a maioria das pessoas, trabalho e tortura sempre foram atividades análogas. A proximidade é até mesmo etimológica: "tripalium", que deu origem a "trabalho", designava um instrumento romano de tortura. Em "As Coisas", publicado em 1965, Georges Perec (1936-1982) faz dessa analogia o mote para um desconcertante romance-ensaio sobre o trabalho e o consumo. Antes de o sociólogo Domenico de Masi difundir a ideia de "ócio criativo", Perec estreava na literatura satirizando as elegantes formas de escravidão inventadas pelo racionalismo capitalista. Em "As Coisas", Jérôme e Sylvie são jovens, moram numa casinha modesta em Paris, têm um bom nível cultural, amam seu grupo de amigos e sua época. Seu único defeito: são pobres. E detestam trabalhar. O subtítulo do livro -"Uma História dos Anos Sessenta"- diz muito. No contexto de Jérôme e Sylvie, não trabalhar é uma disposição, antes de tudo, ideológica. Mas Perec não seria Perec se seu romance fosse só um libelo bem-humorado a favor da boêmia, contra o capitalismo escravocrata. A mensagem é mais sutil. UTOPIA INFANTIL Jérôme e Sylvie passam mal só de pensar em procurar emprego numa empresa qualquer. Mas não abrem mão das boas coisas da vida: viagens, bons restaurantes, boas roupas etc. Para pagar os pequenos luxos, fazem bicos numa agência de publicidade. E sofrem com a vidinha mixuruca que levam, açoitados pelo apetite de consumir. Perec sente um carinho tão grande por seus personagens que logo começamos a concordar com eles. Jérôme e Sylvie não são figurinhas ingênuas e mesquinhas. São crianças inocentes numa loja de brinquedos caros. Os sapatos, os livros e os vinhos atrás das vitrines não são apenas "coisas". São extensões de seus corpos e espíritos. No processo vitalício de autoconstrução, não dá para ser autêntico sem os produtos e os serviços de qualidade. No final, a resistência dos protagonistas será quebrada. Um bom emprego, numa empresa sólida, é o destino de ambos. Porém, em nome de uma utopia infantil que também já foi nossa, passamos o tempo da leitura torcendo para que isso não aconteça. "As Coisas" antecede o ciclo de obras comandadas pela cartilha do grupo experimental Oulipo (Laboratório de Literatura Potencial). A obsessão com o pormenor, típica do "nouveau roman" francês, está presente em cada página da história de Jérôme e Sylvie. Porém, não há aqui as radicais restrições formais que fizeram a fama do autor. Parte do charme do romance se deve justamente a isso. Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros |
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