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Crítica romance

Livro de mexicano é espécie de alegoria de tiranos latinos

"Cães Heróis", de Mario Bellatin, conta história de personagem despótico

NELSON DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O escritor mexicano Mario Bellatin, vitimado pela talidomida, nasceu sem o antebraço direito. Essa idiossincrasia anatômica multiplicou em sua obra as deformações congênitas. Em mais de 20 livros publicados, as malformações físicas e morais são a substância que aglutina biografia e ficção.

"Cães Heróis", de 2003, é o terceiro livro de Bellatin lançado no Brasil. Antes vieram "Salão de Beleza", de 1994, sua obra mais elogiada, e "Flores", de 2000.

Em "Cães Heróis", o leitor é apresentado a um homem paralisado, talvez com esclerose lateral amiotrófica, que lembra muito a figura de Stephen Hawking.

Porém, sem a grandeza intelectual e a generosidade do cientista britânico.

Esse homem é a autoridade despótica na casa que divide com a mãe, a irmã, 30 pastores belga malinois e algumas aves.

Sob sua tirania há ainda um obediente enfermeiro que também treina cães.

As pessoas não têm nome próprio. São substantivos genéricos de uma cena beckettiana: o homem imóvel, o enfermeiro-treinador, a mãe, a irmã. O privilégio de um nome é concedido apenas aos dois cães mais queridos: Annubis e Shakura.

A simplicidade estilística e narrativa de Bellatin assemelha-se a um crime premeditado, a favor da lucidez. É um plano à prova de falhas, capaz de fazer o leitor se sentir mais inteligente.

Os capítulos de "Cães Heróis" são curtíssimos, separados por uma página sem texto. A narrativa tem a extensão de um conto. Vistos do exterior, os personagens sem nome são apenas esquemas simples.

Como tanta simplicidade pode estimular a sagacidade do leitor?

Talvez somente a psicologia consiga explicar esse fenômeno: o esquematismo programado de Bellatin potencializa a livre associação de ideias.

ALEGORIA

Uma espécie de alegoria sádica põe a sagacidade em movimento. A existência despótica e cruel do homem imóvel passa a ser a nossa, da América Latina inteira.

O tirano paralisado -controlando e, ao mesmo tempo, sendo controlado por cães assassinos- passa a ser Augusto Pinochet, Getulio Vargas ou Hugo Chávez.

Seguindo essa dinâmica fractal, as relações doentias da ficção ganham outros sentidos: religiosos, políticos, sociais etc. É a simplicidade da narrativa desencadeando a complexidade na fantasia do leitor.

Reforçando a ideia de mutilação física e intelectual, a edição brasileira de "Cães Heróis" não tem capa. O leitor recebe o miolo com a costura à mostra, dentro de um saco plástico.

NELSON DE OLIVEIRA é doutor em letras pela USP e autor de "Poeira: Demônios e Maldições" (Língua Geral).

CÃES HERÓIS
AUTOR Mario Bellatin
TRADUÇÃO Joca Wolff
EDITORA Cosac Naify
QUANTO R$ 37 (128 págs.)
AVALIAÇÃO bom

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