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Crítica romance

Com ironia, romance mistura ficção e antropologia filosófica

O núcleo dramático do romance reside na possível articulação com as muitas narrativas nas quais se enreda

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A Vida Obscena de Anton Blau" é o segundo romance de Maria Cecília Gomes dos Reis, professora de filosofia na Universidade Federal do ABC e tradutora do clássico "De Anima", de Aristóteles.

O currículo não é estranho ao misto de ficção e antropologia filosófica irônica que caracteriza essa prosa híbrida e desafiadora, ainda em busca de sua melhor composição.

Em termos de enredo, pode-se resumir assim a história de Anton Blau: ele é filho de mãe solteira e pobre que o entrega para ser criado por uma ex-prostituta. Esta se casa com um antigo cliente e cedo enviúva, herdando do marido uma pequena fortuna.

Quando o menino completa 12 anos, morre-lhe a mãe adotiva, passando a sua tutela e posses para uma irmã do marido, mulher de rígida formação calvinista, depois conversa ao catolicismo e, enfim, à masturbação.

E conquanto Anton tenha grandes potencialidades físicas e intelectuais, a combinação de inércia e talento para acusar os defeitos do mundo arrastam-no a uma existência anódina, dissipada com amores fugazes de rapazes.

Sem dinheiro, aplica-se então a um cruel processo de interdição da antiga tutora, de quem suga as economias, até a morte dela, num asilo.

Incapaz de tomar as rédeas da própria vida, Anton ainda guarda o ressentimento de ser deixado por um jovem amante que sonha se tornar escritor. Só e sem perspectiva, se vê reduzido a "um anão sentado no ombro do antigo gigante de si mesmo".

OUTRAS NARRATIVAS

Não pense o leitor que, ao contar esse enredo simples e inexorável, estraguei a surpresa de ler o livro. Não reside nele o núcleo dramático do romance, mas na sua possível articulação com as narrativas nas quais se enreda.

Algumas são especializadas, como aulas de filosofia ou de história, ainda que comicamente recriadas. A questão da vida como representação, a revelação dos versos do Corão a Maomé ou os dilemas do cristianismo aparecem como fiapos de sentido mais aludidos que realizados.

Ainda irrompem episódios que glosam as imprecações do célebre jogral Marcabru, ou atribuem a narração, entre outras enunciações provisórias, ao amigo invisível de uma menina de quatro anos ou ao namorado inexistente de uma moça inteligente, fisicamente sem graça.

Comparece também a autora cinquentona do livro que está sendo dado ao leitor, e que tem menos uma história a contar do que uma voz a afirmar seu lugar próprio, como presença irredutível. Por isso mesmo, o livro emprega o tempo presente.

Em face dessa presença, a obscenidade da vida de Anton Blau parece estar menos no que ele faz ou deixa de fazer do que na tibieza da sua autocrítica. Como o Bernardo Soares do "Livro do Desassossego", aludido várias vezes no romance, os seus motivos para reformar o mundo defeituoso evidenciam a impotência de reformar a si mesmo.

O livro só não é melhor do que já é porque o seu constante deslizamento nem sempre encontra o nervo, a tensão das narrativas e citações, o que abstratiza as histórias particulares sem impedir que se tornem passageiras as formulações conceituais.

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Unicamp e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp).

A VIDA OBSCENA DE ANTON BLAU
AUTORA Maria Cecília Gomes dos Reis
EDITORA 34
QUANTO R$ 32 (136 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo

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