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Crítica contos

Novo livro de Mia Couto peca ao se basear em influências

Coletânea do moçambicano exagera nas referências a Guimarães Rosa

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O fato de Mia Couto já ter assumido publicamente e com frequência sua predileção por Guimarães Rosa e a influência que este exerce em sua obra poderia isentá-lo da acusação de cópia.

Afinal, citações, referências e apropriações há muito já são consideradas parte importante da linguagem da literatura atual, compondo, com inúmeros outros recursos, parte significativa de um pensamento estilístico carregado de possibilidades e de liberdade.

Não é esse o caso, entretanto, de "Estórias Abensonhadas". É de se perguntar se a fronteira que separa apropriação consciente e enriquecedora da semelhança exaustiva não é a dose, a extensão da influência.

Se for esse o caso, talvez seja isso o que explica a permanente sensação de "déjà-vu" que o leitor, ao menos o leitor brasileiro, terá, ao ler este livro.

"Estórias Abensonhadas" é uma coletânea de contos curtos, todos passados depois da revolução em Moçambique, cujos protagonistas são personagens simples do cotidiano, vivendo "estórias" milagrosas, rotineiras, reveladoras das transformações, mas também das injustiças sociais do país.

Sua principal característica é sempre o acontecimento no nível do maravilhoso e a linguagem oral, repleta de montagens, combinações e neologismos.

As tramas surpreendem, emocionam e o estilo é competente, bem costurado. Mas a quantidade de referências e semelhanças com Guimarães Rosa é tão excessiva que o efeito inevitável é de esvaziamento do recurso.

Até mesmo sem essa grande influência de Rosa na memória, o uso de frases generalistas, proverbiais, os neologismos e as tiradas poéticas e transgressoras da sintaxe seriam ainda exageradas.

Mas como ler um conto como o primeiro deste livro, "Nas Águas do Tempo", e não lembrar quase integralmente de "A Terceira Margem do Rio", de Rosa? -"Você era dos que se calam por saber e conversam mesmo sem nada falarem"; "chegada a incerta hora"; "e vi: o vermelho do pano dele se branqueando em desmaio de cor".

E "A Menina de Lá" ressoa também de maneira bem forte em "As Flores da Novidade", na menina que tem "o porém dela" que é "ser vagarosa de mente" e é chamada de "Novidadinha".

E a frase "aquilo que não havia acontecia", do autor mineiro, ecoando em "descrevia era o que não havia".

O mesmo com o cego que vê mais do que os videntes; as frases feitas só de substantivos; o instante "que transbordava eternidades"; as frases com verbos intransitivos, como "os olhos de Glória não exerciam", os paradoxos, como "vidente invisual" e as sentenças proverbiais, como "olho por olho, dente prudente", ou "na parede de um gabinete todas as espingardas são pardas".

O que falta a Mia Couto é o que sobra. E o que sobra em seu livro é Guimarães Rosa.

ESTÓRIAS ABENSONHADAS
AUTOR Mia Couto
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 35 (160 págs.)
AVALIAÇÃO regular

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