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Entrevista Wang Shu

A voz dos arquitetos chineses é muito baixa

VENCEDOR DO PRITZKER DEFENDE RECUPERAÇÃO DE MATERIAIS E DE TRADIÇÕES CONTRA EFEITOS DA URBANIZAÇÃO DESENFREADA

FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL A HANGZHOU E NINGBO (LESTE DA CHINA)

Nas últimas três décadas, as cidades chinesas receberam 431 milhões de pessoas, a maior urbanização da história mundial. Bairros tradicionais foram derrubados, dando lugar a avenidas de várias pistas e espigões.

Na contramão desse processo estão Wang Shu, 48, e seu escritório, Amateur

Architecture (arquitetura amadora). Radicado em Hangzhou -longe dos grandes centros e com "só" 8,7 milhões de habitantes-, prioriza materiais reciclados, integração da construção com o entorno e a releitura de tradições construtivas chinesas.

Seus projetos, como o Museu de História de Ningbo, cidade próxima a Hangzhou, se diferenciam pelo uso de sobras de demolições da região e pelo desenho assimétrico de janelas e escadas.

No mês passado, a cruzada de Wang Shu ganhou o reconhecimento do Pritzker, o prêmio máximo da arquitetura, que já homenageou nomes como os brasileiros Oscar Niemeyer e Paulo Mendes da Rocha. Foi o primeiro chinês a receber a honra.

Na semana passada, Wang Shu falou à Folha, num café de Hangzhou.

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Folha - O sr. é crítico do processo de urbanização chinês. Qual é a sua contraproposta?

Wang Shu - O processo de urbanização chinês segue uma escala e uma rapidez sem precedentes. Nesse processo, falta discussão. A China, agora, acredita excessiva e exclusivamente na função do mercado. É preciso pensar, por exemplo, nas relações entre construção e tradição cultural da cidade. E também é preciso refletir sobre a transformação do modo de vida e sobre como as pessoas querem viver.

Não basta copiar os modelos de Cingapura ou de Hong Kong. Mas, quando as pessoas percebem o problema, o estágio de construção já está adiantado. Os arquitetos chineses precisam ter um papel mais ativo nesse processo; sua voz ainda é muito baixa.

O sr. disse que, quando ouve sobre demolições de hutongs [antigos bairros de Pequim], já não fica com raiva, só chora. O sr. concorda com a afirmação de que o capitalismo é quem faz a revolução e que resta à arte discutir estética?

Acredito que os arquitetos têm uma responsabilidade social. A arquitetura muda a vida de pessoas, a cultura e a história das cidades. A influência é sem precedentes e irreversível. Numa época assim, os arquitetos se conceberam apenas como decoradores de apartamentos. Acho isso uma perda das morais sociais fundamentais.

O sr. é elogiado por duas qualidades que muitos dizem faltar à China: inovação e uso racional de recursos. Como é possível avançar nesses aspectos?

Na verdade, estou sempre tentando fazer com que essas duas coisas se combinem. E, de verdade, isso fazia parte da forma tradicional de construção na China. A nossa maneira tradicional de construção reciclava materiais, tinha sua própria maneira de desenvolvimento sustentável.

O material era normal, como tijolo, madeira; parecia de fácil deterioração, mas a construção durava até mil anos, pois os chineses o renovavam. Com a modernização, esse sistema foi rompido. Agora, as construções tradicionais estão sendo demolidas. É um desperdício. Como arquiteto, é impossível não responder a essa realidade.

Na modernização, essa ideia se reflete no uso de materiais reciclados, na discussão da conexão entre construção e história e no aproveitamento racional do material. Isso preserva de fato a tradição, em vez de simplesmente fingir que a preserva, fazendo alarde do uso de elementos tradicionais.

O seu trabalho é diversificado e inclui museus, campi e um condomínio residencial. O que une esses trabalhos?

A discussão sobre a relação entre construção e natureza, que se reflete em cada obra. Aquele condomínio com 200 apartamentos, por exemplo. Cada um deles tem um espaço para flores e plantações. Isso é uma parte importante do modo de vida: a vida com plantas é bem diferente da vida sem plantas, pois o ser humano é ligado intimamente com a natureza.

Outro exemplo é o campus de Xiangshan, que reflete uma fusão entre a construção, a montanha e o campo. Isso é mais importante do que uma construção sozinha.

Com relação ao Museu de Ningbo, o sr. pode explicar que materiais usou e como foi negociar o projeto?

O museu é a minha maior obra com uso de material reciclado.

Antes, eu havia completado o campus de Xiangshan. Muita gente diz que gosta da ideia daquele campus, mas eles não acreditam que essa ideia possa ser aplicada também em outras construções.

Um ponto importante a respeito do museu é que está situado no centro da cidade e foi aprovado pelo governo, o que é muito difícil. Na verdade, quando apresentei meu desenho, eles não gostaram.

Eu ganhei uma licitação internacional para o museu. Durante muito tempo, o governo rejeitou o meu projeto, eu insisti muito. E, claro, durante esse processo, havia mais dificuldades. O próprio uso de material reciclado: utilizei bambu e concreto, que não se combinam na construção chinesa atual. Isso exige vários testes. O processo de avaliação foi complexo. Os materiais precisaram ser aprovados por diferentes setores do governo. Foi duro. Por isso, a realização dessa obra foi um milagre.

O sr. conhece a obra de Oscar Niemeyer?

O que eu sei é que ele tem 104 anos e parece que, até agora, é comunista. Ele é idealista. A obra modernista dele reflete um ar da América Latina. Gosto muito dele. Ele é de esquerda, tem posicionamento próprio.

Pode nos falar sobre seus novos projetos?

Temos duas obras em andamento. Uma fica dentro do campus de Xiangshan, um hotel para professores visitantes. Estou tentando usar o solo como material de construção. E o outro fica na montanha, perto de Ningbo. É um novo museu, que vai exibir presentes que as famílias de noivas davam aos noivos antigamente. Para essa obra, estou pesquisando a construção tradicional com pedras, pois ali há muitas.

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