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Carlos Heitor Cony

Pedaços da memória

Quando alguém me provocava ou me aborrecia, eu reagia e ameaçava: "Vou contar para o meu pai!"

NOS ANOS mais antigos do passado, tempo de minha infância, não havia Dia dos Pais. A data só seria festejada mais tarde, para corresponder ao Dia das Mães, que sempre existiu de uma forma ou de outra. Não havia um Dia dos Pais, mas todos os dias eram dele.

Sozinho, ele enchia a casa. Quando saía para trabalhar, tudo parecia vazio, pior, tudo parecia abandonado. Se entrasse um ladrão, se nos dias de tempestade caísse um raio no telhado, se tudo pegasse fogo -que seria de nós sem ele?

Mas ele voltava todos os dias, trazia sempre uma novidade, um doce, um pão especial que comprara na cidade. E mesmo que nada trouxesse, quando chegava, a casa se enchia com a presença dele, a voz, o cheiro dele.

Acendia todas as luzes, deixava a gente ficar acordado até tarde, pois queria plateia, que nós víssemos como ele era grande e majestoso quando fazia qualquer coisa, e mesmo quando nada fazia, ficando na rede, olhando o teto e buscando as notícias num rádio de ondas curtas e médias. Durante a Segunda Guerra, fazia questão de ouvir todas as noites o Big Ben, o sino que a BBC transmitia para o mundo, mostrando que Londres resistia.

O pai também era um mundo. O mundo parecia que obedecia a ele. Eu o considerava a coisa mais poderosa do Universo. Quando alguém me provocava ou me aborrecia, eu reagia e ameaçava: "Vou contar para o meu pai!". Sem ele, ando por aí meio desorientado, se me acontece alguma coisa, nem tenho o consolo de contar para o meu pai.

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Durante anos, morei em frente ao mar. Acordava cedo, precisava escrever a crônica para o jornal que me aturava.

Se perdesse aquela hora matinal, teria dificuldade em arranjar tempo e espaço para cumprir a tarefa da qual não chegava a gostar, aliás não gostava de tarefa alguma, até hoje encaro o trabalho como maldição que caiu em meu DNA vinda de Adão, que foi obrigado a ganhar o pão de cada dia com o suor do seu rosto.

Abria a Remington portátil na mesinha da varanda quase debruçada sobre a praia. E via chegar o homem alto, embrulhado num roupão branco. Era um senhor solene.

Apesar da idade, parecia um jovem que ficara com os cabelos brancos antes do tempo. Mergulhava nas ondas como um campeão e, como um campeão, misturava-se nas espumas, ia longe, sua cabeça branca cortava a linha azul do horizonte. Depois saía do mar, como um vitorioso, embrulhava-se no roupão branco e desaparecia. Quem seria ele? Um diplomata aposentado, um ex-ministro, um banqueiro, um empresário que comandava milhões?

Até que fui ao prédio vizinho apanhar a encomenda que um amigo ali deixara com o porteiro, um LP que havia muito procurava. Subi os degraus da portaria que um faxineiro varria. Pedi que chamasse o porteiro, ele tinha um disco para me entregar. Esperei um minuto, talvez dois. E vi chegar o homem alto, solene, cabelos maravilhosamente brancos. Só não estava com o roupão que lhe dava o ar de diplomata aposentado, de ministro, de milionário.

Vinha com a farda azul de porteiro. Entregou-me o disco, o "Concerto para a Mão Esquerda", de Ravel, gravação da Deutsche Grammophon, com o pianista Walter Giesing. Ao agradecer, disse que o conhecia, que o via todas as manhãs como um grão-senhor que vencia o mar. No dia seguinte, ele não apareceu na praia. Nunca, nunca mais apareceu.

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Numa ilha perdida no oceano, deixaram de nascer criancinhas. Homens e mulheres viviam em paz, não se atraíam, viviam todos como irmãos, na inocência natural da carne.

Um missionário foi lá para saber o que estava acontecendo. E ficou horrorizado: homens e mulheres andavam nus, na maior intimidade, nem sabiam o que era sexo. Na mesma hora, o missionário rasgou a batina e fez pequeninas tangas para que as mulheres pelo menos escondessem o que fosse possível.

Na primeira noite, o missionário foi dormir, mas não conseguiu. Os machos procuravam desesperadamente as fêmeas, muito se fornicou à custa das pequeninas tangas que excitaram os homens e deram mais prazer às mulheres. Meses depois, nasciam criancinhas naquela ilha perdida no oceano. O missionário as batizava, pois lá ficara para sempre.

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Álvaro Pereira Júnior

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