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Crítica / Terror Bela fábula de Navarro une encantamento e escatologia INÁCIO ARAUJOCRÍTICO DA FOLHA Logo no início do filme "O Homem que Não Dormia", um sujeito conta histórias fantásticas às pessoas: homens, crianças e mulheres partilham histórias de lobisomens e mulas sem cabeça. Que lugar será esse? Uma cidadezinha de interior. O tempo é um tempo qualquer: tempo do sonho. Pois nessas histórias o que nos chega são notícias de um mundo encantado: a fábula, o mito, as maledicências interioranas... Mas elas nos levam a esse pequeno mundo onde os deuses convivem com os homens (estamos na Bahia, bem entendido). O lugarejo é um mundo, com seus mitos, tristezas, padres que visitam benzedeiras, crendices que se fundem à realidade etc. Esse é um aspecto a não negligenciar no novo filme de Edgard Navarro. Do meio de uma fábula pode aparecer, por exemplo, o louco do lugar, esse personagem pitoresco que quase toda cidade pequena conhece. Mas aqui um flashback nos situa em relação ao mundo real: nós o vemos sendo apanhado pela polícia (ou pelo Exército, estamos na ditadura) e, depois, sendo solto após ser torturado. Não é esse sujeito que aderirá ao coro de "pra frente Brasil", durante a Copa de 1970, certamente... O filme ganha então uma segunda dimensão: o fabulário concebido de início sob a tutela de Monteiro Lobato começa a mostrar uma face política, e não necessariamente agradável. Do louco que berra no meio da rua ao talvez suicida que aparece enforcado num galho de árvore, algo se insinua a partir das fábulas, mas já num campo mais concreto. Entre essas fábulas em que a repressão e o atraso não deixam de se manifestar é que surge a trágica história do homem condenado a vagar eternamente, sem eira nem beira: o homem que não dormia. Ele é também um fantasma, o fantasma do coronelismo, do poder absoluto de alguns homens (e, no caso, de como uma mulher rebelde o afetará para sempre). Estranho e belo filme, em que assistimos a um retorno de tantos recalques nacionais: o coronel, os fantasmas, a tortura. Histórias em que as gerações não se sucedem, mas se sobrepõem, pois o tempo permanece imóvel. Estranho retorno, também, desse cinema marginal de que Navarro fez parte, invadindo o "novo Brasil 2000" com sua mistura de encantamento e escatologia. É como se os anos de terror voltassem para lembrar que, sim, melhoramos... Mas todo esse terror continua a existir em nós: não dá para dormir, simplesmente. Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros |
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